"SENTINELA" DE MÍLTON NASCIMENTO E FERNANDO BRANT1
Hildo Honório do Couto (UnB/GEPLE)
Pode-se abordar uma obra de arte de maneiras as mais diversas possíveis. Pode-se, por exemplo, simplesmente consumi-la, fruí-la sem maiores preocupações críticas. No entanto, ela pode ser encarada criticamente, com vistas não apenas no deleite que possa proporcionar, mas visando detectar os princípios subjacentes à sua criação e, principalmente, à sua estrutura e funcionamento.
As abordagens críticas à obra de arte existentes são, frequentemente, parciais, para não dizer unilaterais. Assim, se o analista-crítico for sociólogo, ter-se-á uma análise e uma interpretação sociológicas; se ele for psicólogo, uma interpretação psicológica; se for filósofo, uma interpretação filosófica; se for linguista, uma abordagem linguística, e assim por diante. Todas estas abordagens levam em conta quase que exclusivamente o conteúdo da obra. A outra face do dado sígnico, ou seja, a expressão, é posta de lado. Por isso estou convencido de que só a abordagem semiótica pode nos dar uma visão integral do objeto artístico. Isto por que só ela é capaz de não só explicitar as relações entre conteúdo e expressão, mas também de mostrar que tal relação é altamente complexa.
Fidelino de Figueiredo fala sobre "a luta pela expressão" em que todo artista (e todo ser humano em geral) está empenhado (cf. A Luta pela Expressão. Lisboa: Edições Ática, 1960). Pode ser uma luta vã, como diz Carlos Drummond de Andrade. Porém, lutamos "mas rompe a manhã". Ou seja, o criador de obra de arte sente, intui algo e procura desesperadamente uma expressão que lhe dê forma. Dada a homologia existente entre conteúdo (o que ele intuiu, sentiu, viu, etc.) e expressão, segue-se que o artista deve encontrar a expressão mais adequada ao conteúdo novo que seja comunicar. Por isso vive numa luta eterna, à procura da expressão ideal. Além do mais, ele tem que impô-la à comunidade, por menor e mais seleta que esta seja. Do contrário, cairá no solipsismo, seu esforço será vão, pelo menos da perspectiva do homem como ser gregário, como fruto do meio, como ser histórico. Uma obra que o artista confeccionar e guardar na gaveta para sempre não será uma obra, ou melhor, não existirá. Existir socialmente significa existir para outros.
Aqui será examinada a música "Sentinela" de Mílton Nascimento e Fernando Brant. A "concepção e arranjo de base" bem como a "interpretação" são do primeiro, com achegas de outros, como veremos abaixo. Ela consta do disco homônimo, da Ariola, lançado em 1980. Poderia ter escolhido um texto literário o que, aliás, é muito mais comum. A escolha de uma música cantada se deve sobretudo a sua maior complexidade, só sobrepujada pelo filme cinematográfico. Com efeito, tanto a obra de arte cinematográfica quanto a musical cantada são, em geral, multi-código, isto é, fazem uso de signos de diversos códigos da cultura, o que é mais visível no filme.
"Sentinela" será considerada como peça artística sem maiores comentários. Para algumas caracterizações da obra de arte, em especial, e do artefato, em geral, vejam-se os capítulos 2.1, 2.2, 2.4 e 3.3 do livro de que este texto foi extraído. Se é uma peça artística é, eo ipso, uma mensagem, ou seja, um texto. Ora, vimos em 2.2 do referido livro que o texto é composto de signos. Resulta da associação de signos referenciais a táticos e/ou mistos, podendo, em alguns casos, constar só da associação de signos mistos a táticos e até de signos táticos entre si, como no caso dos textos das linguagens formais. No entanto, o texto como um todo é também um signo, bastante complexo, a bem da verdade. Se é signo, consta de conteúdo e expressão como já foi salientado por diversas vezes. No caso em questão, os autores conceberam uma situação, um evento, e lhe deram uma expressão. Ou seja, ao compor "Sentinela", eles associaram uma série de signos culturais, pertencentes a códigos os mais diversos, e condensaram tudo no texto em questão. Todo o trabalho que tiveram para a composição da obra foi o que se chama codificação. Interpretá-la, ou seja, decodificá-la, é percorrer o caminho de volta, partindo da expressão em direção ao conteúdo. Como é consabido, um caminho só pode ser percorrido por quem o conhece, pelo menos em parte. Do contrário ele se perderá, se desviará, no sentido etimológico do termo.
Numa abordagem semiótica deve-se notar, de início, que o texto "Sentinela" acima caracterizado espácio-temporalmente é um tipo e não uma ocorrência ou, na terminologia de Peirce, ele é um legissigno. O exemplar que eu tenho em mãos, por outro lado, é um sinsigno, é um espécime da espécie "Sentinela". Assim, passemos diretamente ao que este exemplar representa, ou seja, a peça musical propriamente dita. Farei um levantamento o mais exaustivo possível dos componentes da expressão e, em seguida, apresentarei o conteúdo provisório a que ela está associada. Finalmente, tentarei mostrar a contribuição de cada componente para o conteúdo total, o que na verdade é a própria interpretação. Não deixarei de apresentar, suplementarmente, alguns juízos de valor.
O texto em si é uma gravação que dura 7 minutos e 30 segundos, ou seja, 450 segundos. Os componentes expressionais, sensoriais (acústicos) são os que se vêem na seguinte lista, com a respectiva duração aproximada.
tempo segmento
40 segundos |
"Tantum ergo sacramentum veneremur cernui et antiquum documentum novo cedat ritui: Praetest fides supplementum sensuum defectui. Genitori, genitoque laus et jubilatio, salus, honor, virtus quoque sit et benedictio: Procedenti ab utroque |
compar sit laudatio.
Amen"2
(cantado por um coro de beneditinos)
35 segundos |
"Meu Senhor, eu não sou digna de que visites a minha pobre morada. Porém se tu o desejas, queres me visitar, dou-te meu coração (bis)" |
35 segundos Antecipação da melodia central, na voz do coro beneditino, com
acompanhamento de órgão, sem palavras.
15 segundos “Longe, ouço essa voz, que o tempo não vai levar"
(cantado por Nana Caymi)
13 segundos Bateria
65 segundos “Morte vela
sentinela sou
do corpo desse meu irmão que já se vai
revejo nessa hora tudo que ocorreu
memória não morrerá
Vulto negro em meu rumo vem mostrar a sua dor
plantada nesse chão
seu rosto brilha em reza
brilha em faca e flor
histórias vem me contar"
(cantado por M. Nascimento)
15 segundos |
"Longe, longe ouço essa voz que o tempo não levará" (cantado por N. Caymi) |
30 segundos “Precisa ouvir sua fora, ê irmão
sobreviver
a morte ainda não vai chegar
se a gente na hora de unir
os caminhos num só
não fugir nem se desviar"
(cantado por M. Nascimento)
25 segundos "Precisa amar sua amiga, ê irmão
e relembrar
que o mundo só vai se curvar
quando o amor que em seu corpo já nasceu
liberdade buscar
na mulher que você encontrou"
(cantado por N. Caymi)
40 segundos "Eia, eia " (cantado por M. Nascimento)
35
segundos "Morte,
vela
sentinela sou
do corpo desse meu irmão que já se foi
revejo nessa hora tudo que aprendi
memória não morrerá"
(cantado por M. Nascimento)
30 segundos "Longe, longe ouço essa voz
que o tempo não levará" (bis)
(cantado por N. Caymi)
4 segundos Transição orquestrada, com violinos.
25 segundos "Eia, eia ,' (cantado por M. Nascimento)
7 segundos "Tantum ergo sacramentum
veneremur cernui (sobrepondo se ao anterior)
et antiquum documentum
novo cedat ritui . . . ."
(coro de beneditinos)
Seguido de "Eia, eia . . . . " (M. Nascimento)
22 segundos "Meu Senhor, eu não sou digna . ."
(cantado por N. Caymi) sobrepondo-se ao anterior (coro)
Estes são os dados sensoriais que, transpostos, nos levarão a todo um mundo cultural, vale dizer, sígnico, cuja complexidade faz dele algo dificilmente mensurável. Mas, dificuldade não quer dizer impossibilidade. Por isso me aventurei a cometer o feito altamente temerário que é a análise e interpretação de uma obra de arte como esta.
Deve-se notar que em geral um componente se imbrica no outro, hão há interrupções, havendo até mesmo sobreposições. No caso da orquestração, ocorre simultaneidade de manifestação com vozes (de M. Nascimento, de N. Caymi e do coro) e de instrumentos (bateria, baixo acústico, piano, violão, violão Ovation, guitarra, tímpanos). A orquestra compõe-se de 12 violinos, 4 violas e 4 cellos.
Para enunciar o conteúdo central do texto em questão seria interessante dar mais algumas informações sobre o contexto a que se refere a música. Ela foi feita para o "seu Francisco" que "fazia café no Juizado de Menores ou cachimbava sentado no corredor. Sempre dizendo verdades, sábio, amigo e bom que era. Pra ele foi feita a letra de Sentinela e ele ainda estava muito vivo". Além disso, "Sentinela, a música e o disco, é um depoimento de vida. Que começa com aqueles amigos e nossa experiência comum e continua diariamente na alegria do convívio com nossos pais, nossos filhos, nossos irmãos e nossos amigos" (informação colhida no folheto que vem junto com o disco e que contém as "letras" das músicas). Assim sendo, observando-se o todo e suas partes componentes verifica-se que o conteúdo básico para o qual tudo se volta resulta de, no velório de um amigo, o observador (os autores, no caso) desejar mostrar que com a morte do corpo ele não desaparecerá, mas estará sempre presente sob diversas formas, sobretudo sob a espiritual. É a etapa da concepção (cf. capítulo 2.2.).
Sabemos que a redundância é amplamente usada na obra de arte, que contém informação qualitativa e não puramente quantitativa. Pois bem, o conteúdo básico é, em princípio, o enunciado há pouco. No entanto, ele recorre em quase todos os componentes listados acima. É o que veremos agora ao investigar a referencialidade dos diversos ingredientes que entram na composição de "Sentinela". Em outros termos, adentremos os códigos de que ela consta.
Em primeiro lugar, temos o "Tantum ergo", transcrito em latim acima e em português logo abaixo a fim de podermos decodificá-lo.
Este grande sacramento veneremos com humildade, rito e o da antiga lei,
ao novo ceda o lugar;
à fraqueza dos sentidos
sirva a fé de complemento.
Ao Pai, ao Filho igualmente
nosso hino de alegria,
toda honra e toda glória
suba da terra constante; também ao Espírito Santo
seja dado igual amor Amém
É um dado da cultura cristã, mais especificamente da liturgia católica. Faz parte de um texto litúrgico maior, o hino “Santíssimo corpo e sangue de Deus” e era cantado, em geral à noite, após a novena, os terços, as rezas etc. O padre iniciava e os fiéis os acompanhavam em cantochão (ou canto gregoriano). Ocorria no momento da exposição e bênção do Santíssimo Sacramento. O “Tantum ergo” ocupa os 40 segundos iniciais e cerca de 7 segundos do final da música, imbricando-se com o “Eia, eia” na voz de M. Nascimento acompanhado de vocal.
Por aí já se pode ver o ambiente litúrgico, religioso que envolve toda a obra o que, aliás, não é de se admirar dado que em nossa cultura a morte, o velório, em suma, o falecimento de um parente ou amigo é momento de reflexão, de piedade cristã, de se pensar na vida no além.
Em segundo lugar, vem o texto cantado por N. Caymi. Esta parte é repetida parcialmente no final da música. Diretamente, este texto é uma adaptação da parte da missa em que, ante a apresentação da hóstia pelo sacerdote (que com isto convida os fiéis à adoração), o povo responde:
Senhor, eu não sou digno de que entreis
Em minha casa. Mas, dizei uma só palavra
e minha alma será salva,
Este ingrediente da liturgia, por seu turno, refere-se à passagem do evangelho em que Jesus cura o servo do centurião (cf. São Mateus 8,5-13 e São Lucas 7,1-10). A propósito, ver também o momento em que Jesus ressuscita a filha de Jairo (São Marcos 5,21-43 e São Lucas 8,40-56) e Lázaro (São João 11,1-46). No texto de São Mateus, lê-se:
Tendo entrado em Cafarnaum, aproximou-se dele um centurião,
e fez-lhe uma súplica, dizendo: “Senhor, o meu servo jaz em casa
paralítico, e sofre muito”. Jesus disse-lhe: “Eu irei e o curarei”.
Mas o centurião, respondeu: “Senhor, eu não sou digno que
entres na minha casa; diz, porém, uma só palavra, e o meu servo
será curado”.
Parece haver, no texto “Sentinela”, mistura com outras passagens bíblicas, talvez com a de Marta e Maria. O fim que os autores visavam não era propriamente fazer uma transcrição fiel, literal, dos textos bíblicos, mas tão só criar uma atmosfera religiosa. O clima de piedade religiosa estende-se, como se vê, até às origens do cristianismo.
Em terceiro lugar, deve-se mencionar que a antecipação da parte central da música (a cantada por M. Nascimento) ainda lembra o “‘Tantum ergo”, uma vez que é apresentada pelo mesmo coral de beneditinos, acompanhado de órgão. Por outras palavras, o clima litúrgico é aqui reforçado. Esta antecipação é um signo misto de significante, quer dizer, é um elemento de transição que conecta o coro inicial com o corpo da música. Trata-se, como se vê, de uma transição suave, sem ruptura, uma vez que a melodia central é antevista numa execução semelhante à do “Tantum ergo” do prólogo.
O texto seguinte, cantado por N. Caymi, fala da eternidade, da intemporalidade de uma voz que se ouve ao longe. Por outras palavras, aqui já se nota o ingrediente “imortalidade da alma”, apresentado de maneira insofismável em São João 6, 47-52 e 11,25-27. Também esta parte se introduz de maneira suave e se desfaz pouco a pouco no segmento (de bateria) seguinte, o qual parece marcar a cadência da marcha em direção à eternidade. Tanto assim que as percussões são suaves, e não bruscas como sói acontecer no caso das baterias.
Em quinto lugar, temos o texto verbal central, cantado por M. Nascimento. Nele encontramos referências a “reza”, “vela” etc., além de todo um clima religioso, próprio do velório cristão. Quanto à parte do texto entre aspas e que vai de “Precisa gritar” até “encontrar”, infelizmente não conheço sua fonte. Entretanto, salientem-se as expressões “a morte inda não vai chegar” e “ê irmão”, que remetem à imortalidade da alma e à fraternidade pregada pelo cristianismo. A propósito da imortalidade da alma, ver as passagens de São João mencionadas acima. É interessante notar que também este segmento é introduzido suavemente. No entanto, quando chega a parte entre aspas, M. Nascimento literalmente grita. Trata-se de uma exortação à coragem, ao não esmorecimento, à união fraternal a fim de não se sucumbirem. Só assim, ou seja, unidos em grupo, na fraternidade, o homem é imortal. A passagem cantada por N. Caymi é outra referência à fraternidade, mas sob a forma de amor. Só assim o homem conseguirá transcender as peias da matéria corporal, mundana, e se libertar para sempre (eternidade). Aqui não deixa de haver também uma referência à revolta contra as tiranias, sejam elas de que tipo forem. Este segmento se inicia e termina suavemente.
O sétimo segmento é cantado por M. Nascimento, que diz apenas “Eia, eia... ”. Dura cerca de 40 segundos. Pode significar tanto uma exortação à tranquilidade espiritual (eia!), como um lamento diante do “corpo desse irmão que já se vai”. De qualquer maneira, é um momento de transição entre a suavidade da voz de N. Caymi para a aspereza intencional, abrupta, da de M. Nascimento que vem em seguida e fala de “Morte, vela, ....”, passagem sobre a qual já falei acima.
Em oitavo lugar, temos o segmento de cerca de 30 segundos, bisado, que é uma espécie de estribilho, cantado por N. Caymi. Sobre ele já falei acima também (“Longe, longe. ..”).
Em seguida vem outro segmento transicional, só de instrumentos (violinos, sobretudo), bastante suave. É um momento de pausa no velório, para reflexão, sobre a vida, talvez. Note-se que silêncio em um ambiente como este é uma maneira de expressar respeito, é uma atitude típica de momentos sérios, solenes, graves. Seguem-se cerca de 25 segundos de “Eia, eia... .”, cujo sentido é mais ou menos o mesmo do anterior.
Estes 25 segundos de “Eia, eia. . .”, de exortação se diluem numa continuação do “Tantum ergo” apresentado no início (cerca de 7 segundos) que, por sua vez, se desfaz, junto com uma repetição do início de “Meu senhor, eu não sou digna...” que aparece logo em seguida ao “Tantum ergo” inicial.
Grosso modo, isso é o que cada segmento contribui para o tema central que é, como vimos, a tentativa de consolar-se, diante da morte de um irmão, com a imortalidade da alma.
Vejamos agora a “letra” da parte central da “música”. A primeira estrofe é uma introdução descritiva, fragmentada, do ambiente em que o observador (o poeta) está. Neste momento ele relembra “tudo que ocorreu”. Aí já se faz sentir uma das tônicas de todo o texto (a “música” toda), ou seja, que dentro da fraternidade cristã o homem não morre propriamente. A morte seria uma espécie de renascimento. Por outras palavras, para os cristãos que ficam (corporalmente) a morte física de um irmão não significa necessariamente o seu esquecimento, sua “memória não morrerá”.
Na segunda estrofe já há uma manifestação de fraqueza, no observador, sob a forma de temor, de morte (“vulto negro”). Tanto que vê a dor do “irmão que já se vai”, dor plantada no chão. Mas, para o cristão a morte deve ser motivo de alegria também (“seu rosto brilha em reza”), pois é renascimento para a vida eterna. Outra vez o observador rememora a vida pregressa do irmão falecido, tanto em sua luta (“faca”) quanto em seus momentos de lirismo, de amor (“flor”). Tudo isso são histórias que o rosto do morto lhe contam. Por fim, o estribilho deixa claro que a passagem do “irmão que já se vai” pela terra permanecerá como um eco distante, eterno, para os amigos que ele aqui deixou, entre os quais se encontra o poeta.
A terceira estrofe realça as ideias de “força” e “sobrevivência” e de que se o ser humano se une, se confraterniza, a morte não chegará. Isto quer dizer que a morte do corpo, como a do “irmão” que ali jaz, é mera passagem para a vida eterna.
A quarta estrofe mostra que o amor e a fraternidade (união) vencem tudo, inclusive a efemeridade da vida terrena. O amor entre homem e mulher, por exemplo, liberta-os, faz o mundo curvar-se diante deles. Com isso superam a materialidade e efemeridade terrenas, tanto nos seres que procriam quanto no fato de o amor ser uma forma de liberdade, de perpetuação, de eternidade.
Na quinta estrofe tem-se o mesmo que na primeira, só que aqui se substitui “ocorreu” por “aprendi”. Isto revela mais uma vez o liame que havia entre o morto e o poeta, ou seja, aquele que parte é irmão no cristianismo. A sexta estrofe é o estribilho, já comentado.
Da paráfrase grosseira do texto verbal feita acima parece ter ficado patente para que se volta todo o texto da música. Dado que ela explora a redundância em profusão, podemos imaginar um quadro que visualiza os passos interpretativos dos diversos níveis semióticos de que o texto todo se compõe.
Transposta a execução física da “música” em meu disco (sinsigno), associamo-la ao texto musical tipo, chamado “Sentinela”. Este consta de diversos recursos (ver acima) a que os autores lançaram mão para transmitir sua mensagem. Todos eles juntos constituiriam o nível 1. Combinados taticamente, convergiriam para o nível 2. Este é a própria união (texto) de todos os ingredientes num todo harmonioso. Este (o texto) é o suporte da mensagem do conteúdo que é, ao fim e ao cabo, um só: “Com a morte do corpo, não desaparece a pessoa; ela sobreviverá na memória dos cristãos que aqui ficam, além do fato de a partida ser para a vida eterna”. Este seria o terceiro nível semiótico e equivale à fase da composição, como sugerido no capítulo 2.2.
1.Conteúdo (no velório do amigo, tentam se consolar com a imortalidade da alma”
1.1.Tática (organização geral da música como apresentada)
1.1.1.Coro de beneditinos
1.1.2. “Meu senhor…...”
1.1.3. “Eia, eia ……. “
1.1.4. “letra”
1.1.5. “melodia”
1.1.6. “outros” ……..
Antes de estudar a tática dos diversos ingredientes do texto verbal total é necessário averiguar a referencialidade de cada um deles. Ela é importante para a decodificação do texto. Isto não quer dizer, porém, que o conteúdo referencial dos ingredientes seja literalmente equivalente ao conteúdo da obra de arte, que é o texto total em questão. Pelo contrário, eles são a matéria prima de que o artista dispunha para dar o seu recado. Como matéria-prima, foram trabalhados, ou seja, adquiriram novo sentido no texto final. Assim sendo, seu conteúdo deve ser buscado dentro do próprio texto. Tanto que ingredientes melódicos, verbais, instrumentais e religiosos de conteúdo referencial nitidamente fixados se voltam para um único conteúdo textual, o da obra em questão. Ou seja, o conteúdo sistêmico (do sistema) passa a ter importância secundária frente ao conteúdo textual. Daí, a alta redundância existente no texto. Isto porque eles não são simplesmente adicionados. Pelo contrário, convergem para uma única finalidade que é a mensagem que os autores quiseram transmitir. O que se tem chamado conotação se deve ao fato de a referência não ter fim. Por exemplo, o texto inicial cantado por N. Caymi refere-se a uma passagem da liturgia que, por seu turno, refere-se a uma passagem bíblica de S. Mateus. Em vez de conotação, há referência indireta.
Para concluir, gostaria de repetir que criar uma obra de arte a partir de um conteúdo a transmitir e buscar uma expressão para este conteúdo. Nesta tarefa de codificação, o artista pode lançar mão de diversos recursos à sua disposição no imenso repertório que é o macro-código cultural. Se ele quiser transmitir muitos conteúdos (significados), terá que enfatizar a referencialidade dos signos a que recorrer. Será um trabalho altamente descritivo. Se quiser transmitir apenas um, ou poucos, como é o caso em questão, poderá pôr a referencialidade dos signos entre parênteses e fazer com que se voltem todos para o conteúdo desejado. No caso os autores partiram (inconscientemente, talvez) do conteúdo já enunciado e foram juntando e combinando diversos fatos que para eles estão associados à morte, inclusive a plangência de diversas passagens cantadas por M. Nascimento e do canto gregoriano. No caso, trata-se da liturgia católica, a qual remete a diversas passagens bíblicas, de mistura com fatos concretos da circunstância das personagens envolvidas. Todas as passagens bíblicas referidas estão relacionadas com a questão da morte e da ressurreição, como vimos.
O que tentei fazer como decodificador foi percorrer o caminho feito pelos autores ao reverso, pois o que me foi dado é o texto (expressão) total e o que eu desejava era chegar ao conteúdo central da obra. Se o consegui ou não é outra história. De qualquer maneira, aqui ficam estes parágrafos a título de sugestão. Não se deve esquecer, no entanto, que eles são uma tentativa, não são nada definitivos, mas provisórios.
Como se viu, não segui à risca a ordem proposta no capítulo 2.2 para o estudo de um texto. No entanto, ela pode ser facilmente recomposta. Assim, ao dar o clima em que tudo se passa estamos na fase de concepção da obra. Ao falar em como os diversos ingredientes se combinaram para dar o texto total, estamos na fase da composição da obra. Quando separamos os diversos ingredientes (cf. a lista dos diversos segmentos, sua duração e os comentários pertinentes!) passamos para a fase propriamente interpretativa, ou seja, a decomposição, visto que é o que faz o receptor da obra. Finalmente, ao verificarmos a referencialidade, tanto dos ingredientes considerados individualmente quanto do texto total, chegamos à compreensão da obra de arte em questão. Esta é a finalidade última de qualquer receptor de qualquer texto formulado por qualquer emissor.
Notas
1 Este texto é o capítulo 3.3.1 de meu livro Uma introdução à semiótica (Rio de Janeiro: Presença, páginas 141-150, 1983). Todas as referências a capítulos remetem a esse livro.
2 Agradeço a Jorge Ponciano Ribeiro as informações sobre a liturgia católica.