[Capa
de 2018]
Hildo Honório do
Couto
O Falar
Capelinhense
Uma Visão
Sociolinguística
Editora
Arvinha
2018
[capa original]
Hildo Honório do
Couto
O Falar
Capelinhense
Uma Visão
Sociolinguística
Universidade
Estadual de Londrina
Londrina
1974
ÍNDICE
Índice ...........................................................
3
Nota prévia
..................................................4
Prefácio...........................................
.............6
0. Introdução........................ .......................8
1. Sintagmática
1.0. Introdução................. ....................16
1.1. Sintaxe............................ ...................16
1.1.1. Período........ .........................14
1.1.2. Oração........................... .................15
1.1.3. Colocação....... ...............................18
1.1.4. Regência................ ........................19
1.1.5. Concordância.. ..............................19
1.2.
Morfologia............................... ........22
1.2.1. Flexão nominal.. ........................
..22
1.2.2. Flexão verbal................ .................24
2. Léxico...... ...........................................28
2.1.
Onomástica................................. 28
2.1.1. Antroponímia.......... ...........28
2.1.2. Toponímia.......................... ..........31
2.1.3. Zoonímia.............................
.........33
3. Fraseologia.........................................35
4. Fonologia............. ..............................39
4.1. Consoantes.... ............................40
4.2. Vogais.................. ...........................45
4.3. Semivogais............. ........................47
4.4. Estruturas silábicas .. .......................50
4.5. Prosódia.................... ......................52
5. Conclusão..................... .....................56
Bibliografia......................... .................57
APÊNDICES
I. Transcrição da fala de Ferro Veio
......... ...........................................................60
II. A forma de negação num em
português............................................................61
III. Nomes de animais domésticos
brasileiros.......................................................64
NOTA PRÉVIA
Este livro é produto de uma pesquisa
feita em 1974 na localidade de Major Porto (antigamente “Capelinha do Chumbo”),
que resultou em uma monografia no mesmo ano, intitulada O Falar
Cepelinhense: Uma Visão Sociolingüística, e que estava inédita até agora. Há
uma cópia dela na biblioteca da Universidade Estadual de Londrina, uma na
UNIPAM de Patos de Minas (que foi excluída do acervo) e outra na Biblioteca
Municipal de Londrina. Afora essas cópias, só existe mais uma, a original, em
meu poder.
Decidi divulgar a monografia agora sem
nenhuma modificação, exceto erros de digitação e outras questões menores. É
claro que ela deve ser lida como uma obra de 1974, de um autor iniciante, ainda
sem muitas leituras, mas cheio de vontade de registrar a fala da sua região.
Como disse o filólogo Serafim da Silva Neto, antes de mais nada é necessário
registrar os dados. Sem isso, nem será possível estudá-los teoricamente no
futuro.
A decisão de publicá-la foi tomada
quando fui relê-la para escrever uma comunicação (Falar capelinhense: um
dialeto conservador do interior de Minas Gerais), que seria apresentada no Colóquio
Internacional: Substandard e Mudança no Português do Brasil, no
Ibero-Amerikanisches Institut, Berlim, de 13 a 15 de outubro de 1997. O
objetivo dessa comunicação era fazer uma comparação dos meus dados de Capelinha
do Chumbo com os do Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, de 1920.
Gostaria de
esclarecer que os dados constantes de o Falar Capelinhense foram
aproveitados para diversas publicações. Duas delas saíram em capítulos do livro
Uma Introdução à Semiótica (Rio de Janeiro: Presença, 1983). Trata-se
dos capítulos 3.2.1. “Micro-toponímia” e 3.2.3 “O código antroponímico”. No
primeiro, comento os nomes de lugares de Capelinha do Chumbo; no segundo, os
nomes próprios, sobretudo os hipocorísticos e os apelidos. Durante o curso de
doutorado na Universidade de Colônia, Alemanha, escrevi a monografia The
Falar Capelinhense, para um “Hauptseminar” sobre línguas crioulas,
ministrado por Annegret Bollée, em 1978. Além disso, escrevi outra monografia
sob o título de “Fonologia do falar capelinhense” (Londrina, 1979) que, como a
anterior, ficou inédita.
Relacionado ao
mesmo tema de O falar Capelinhense, publiquei duas monografias. A
primeira é “Sons usados na comunicação homem-animal na região de Major Porto”,
em Estudos lingüísticos (GEL) XV. 125-132 (1987), que fora lida como
comunicação no XXXIII Seminário Linguístico do GEL, Campinas (SP), 12-13/6/87,
sob o título de “Sons usados na comunicação homem-animal numa fazenda de Minas
Gerais”. A segunda é “A comunicação homem-animal numa fazenda de Minas Gerais”,
em Cadernos de linguagem e sociedade 1,1.40-48 (Brasília: Thesaurus/NELI-CEAM,
1995). Esta última trata da questão da comunicação homem-animal como um todo,
ao passo que a primeira se restringe ao aspecto fonético.
Embora não tratem
especificamente do falar capelinhense em geral, estão também relacionados com
esse tema os seguintes trabalhos: (1) “Algumas tendências fonológicas do
português”, comunicação lida no XII Seminário do GEL, Assis (SP), 25-26/11/74,
e posteriormente publicada em Estudos linguísticos do GEL XI. 80-88
(1985); (2) “Tonicidade vocabular x padrão silábico ótimo”, comunicação lida na
Reunião Anual da SBPC (UnB), 12-18/7/87, inédita. Também inédito é o pequeno
ensaio, de 1975, “Uma forma de negação muito frequente, mas nunca tratada nos
compêndios”, que trata das duas formas de negação “não” e “num”, que sai aqui
como Apêndice II.
No fundo, no fundo, a decisão de publicar O falar
Capelinhense foi um retorno meu a Capelinha do Chumbo, vários anos depois,
que me revelou que muita coisa registrada em 1974 já estava caindo em desuso.
Hoje (2018), com os meios de comunicação muito mais intensificados, o ritmo de
desaparecimento dos traços do dialeto caipira se acelerou ainda mais. Portanto, independentemente de teorias, é
urgente a publicação do pouco que foi registrado.
Lamentavelmente, em minhas
diversas mudanças perdi todas as gravações em fita “cassette”. Até mesmo as transcrições que fiz delas em 1974
também se perderam. Só ficou uma, que reproduzo
como Apêndice I. Ela não constava da monografia
original. Como Apêndice III, incluo outro
ensaio inédito sobre nomes de animais
domésticos urbanos, que pode ser
considerado um contraponto aos nomes de animais de Capelinha do Chumbo.
Os acréscimos e/ou explicações que estou introduzindo
agora no texto vêm entre colchetes [].
As notas de rodapé originais são indicadas normal e
sequencialmente, imediatamente antes das Referências.
As que acrescento agora vêm precedidas de asterisco
(*).
*
* *
P.S.: Na verdade, esta
monografia não saiu em 1997, como dito acima. Ela só está saindo agora, em 2018.
Curiosidade: ela foi escrita em uma máquina Olivetti portátil.
PREFÁCIO
Antes de mais nada faz-se necessária uma explicação
sobre como foi feita esta pesquisa. Existem muitos métodos para a pesquisa de
campo, desenvolvidos pelos pesquisadores da Geografia Linguística e da
Dialetologia. Um exemplo pode ser visto em Introdução ao Estudo da Língua
Portuguesa no Brasil, no capítulo “Do método nas pesquisas dos falares
brasileiros”, de Serafim da Silva Neto, edição do Instituto Nacional do Livro,
MEC, 1963. No entanto, os que têm trabalhado com a Geografia Linguística têm
dado muita importância à palavra isolada; pelo menos é o que parece. Aqui,
entretanto, deixei o informante falar à vontade sobre coisas e acontecimentos
do lugar, como se pode ver nas falas transcritas. Desta maneira obtém-se uma
linguagem natural, usada em seu próprio meio sócio-cultural. Não se força o
informante a dar esta ou aquela forma. Ele se expressa naturalmente, em
conversa informal. É a linguagem “em situação”, nos termos de Malinowski
(Malinowski 1972).
Eu nasci no lugar e vivi nele durante 16
anos. Isso faz com que eu seja familiarizado com a cultura local, o que me
ajudou muito no momento da transcrição das gravações. Uma outra vantagem que
senti no momento das entrevistas foi que quando as pessoas ficavam sabendo que
eu era do lugar ficavam mais à vontade, principalmente quando se lembravam de
alguma coisa a respeito da época em que eu e minha família morávamos lá.
O sistema
gráfico adotado para transcrever as falas é basicamente o sistema oficial da
ortografia do Português. As únicas observações que merecem ser feitas são as
seguintes: a) sendo as palavras ou paroxítonas ou oxítonas (sem exceção), o uso
do acento gráfico se restringe ao segundo caso, quando terminam em vogal
(“casa”, “cantano”; “cantá”, “vendê”, etc.); b) se aparecer acento na penúltima
sílaba, ou mesmo em sílabas anteriores, é para indicar a distinção entre som
aberto [ò, è] e fechado [o,e] (“révorve”/”revorve”, “cócão”/”cocão”); c) as
letras e e o finais representam sempre os vocóides [i] e [u]
(“aquele”, “burro”), salvo quando a palavra é oxítona, caso em que as letras
vêm com um acento diacrítico (“vendê”, “se ele vié”, “mió”); d) no caso de
“que” e “qui”, represeitei-os diferentemente, uma vez que as pronúncias são
diferentes.
No
final da Introdução transcrevo um diálogo natural, tal qual foi proferido. Em
seguida, faço uma “reorganização” dele a fim de torná-lo mais compreensível às
pessoas que não estejam familiarizadas com o falar local. Em Apêndice,
apresento excertos de falas de pessoas as mais diversas, com a finalidade de
dar uma visão mais ampla do falar capelinhense. Transcrevo a fala de um líder
político, de um dentista prático, de analfabetos e de pessoas
semialfabetizadas. Todos eles nascidos no local.
Não me restringi a um único informante a fim de que a amostragem do linguajar
local fosse o mais abrangente possível, dentro das limitações naturais deste
trabalho. Não senti necessidade de seguir à risca o que recomendam normalmente
para a escolha do informante os dialetólogos, uma vez que a finalidade aqui é
tentar “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e
social...” (Bright 1966).
Desejo agradecer
aqui a acolhida amiga que me proporcionou José Gonçalves Arcanjo e sua esposa,
Dalva Marques de Sousa Arcanjo, bem como a Jorge Rodrigues. Agradeço também a
Agripa Luís da Silva que me serviu de informante horas e horas a fio,
agradecimento este extensivo a sua esposa Maria das Graças da Silva. Agradeço
ainda a Osmar Mota de Oliveira e a sua esposa Estela Mara de Oliveira
(ex-Teixeira). Devo agradecer também à viúva Cecília Juvenute de Jesus e a seus
filhos Gaspar Dutra Rodrigues, João Eustáquio dos Santos (Juão Rita),
Vicente Lázaro Rodrigues (Cente) e João Eustáquio Rodrigues. Pela
acolhida e hospitalidade devo agradecer ainda à senhora Antônia Joana de
Miranda, viúva de Leonardo Faustino de Miranda, agradecimento que se estende a
seus filhos José Vilácio de Miranda e Nilson Donizete de Miranda, que me
acompanharam em longas e enfadonhas jornadas. E, como não poderia deixar de
ser, um agradecimento é devido a toda a população de Capelinha do Chumbo.
Londrina, 1974.
0. INTRODUÇÃO
Todos os estudiosos dos problemas de
linguagem são unânimes em afirmar que as linguagens regionais, típicas, que revelam
às vezes vestígios do português arcaico, tendem a desaparecer, ou, pelo menos,
perder muito de seu sabor regional, devido à força niveladora dos modernos
meios de comunicação. Pois bem, o que pretendo fazer aqui é registrar, no que
me é possível, um espécime destas linguagens do interior do Brasil.
A região em que fiz minhas pesquisas é a
antiga Capelinha do Chumbo, cujo nome oficial hoje é Major Porto.
Capelinha do Chumbo, ou Major Porto, está situada no
município de Patos de Minas, a chamada “Capital do Milho”, havendo mesmo um
livro com este nome (Mello 1971). Patos de Minas é uma cidade mineira sita na
região chamada Alto Paranaíba, portanto próxima do Triângulo Mineiro. Capelinha
do Chumbo fica quase no ponto extremo leste do município, havendo além dela só
o distrito de Bonsucesso de Patos. Segundo dados colhidos no IBGE (seção de
Patos de Minas) e no livro Patos de Minas - Plano Diretor Físico
(organizado pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU e
Prefeitura Municipal de Patos de Minas), a localização geográfica de Capelinha
do Chumbo é a seguinte: 45° 04’ W. Gr. e 18° 42’, com a altitude de
aproximadamente 750m acima do nível do mar. Sua área aproximada é 242,5km2.
Para sua população não encontrei dados. Calcula-se que esteja entre 2.000 e
3.000 habitantes. Pela lei municipal nº 747, a delimitação da região é a
seguinte:
ZONA URBANA DE MAJOR PORTO: Iniciando a
linha divisória na barra do córrego da Batata, no rio Areado, segue pelo
córrego acima até a ponte; deste ponto vai em rumo ao rio Areado, num marco
colocado a 50 (cincoenta) metros acima do cemitério; depois, pelo rio Areado,
até onde teve princípio.
ZONA SUBURBANA DE MAJOR PORTO: Iniciando na
margem do rio Areado, num pau de óleo, segue a linha divisória em rumo até o Morro de Pedra, tendo
atravessado o córrego da Batata; do Morro de
Pedra, passando pelo Mato Seco, vai até a margem do rio Areado, no lugar denominado
Varginha; depois, por este rio abaixo, até onde teve ele princípio (Lei de 10 de março de 1964).
Antes de apresentar o que pretendo
apresentar, ou melhor, antes de propor a tese em torno da qual o trabalho
girará, vejamos algo sobre a história de Capelinha do Chumbo (Major Porto).
MAJOR PORTO - Na antiga freguesia de
Morada Nova, havia um arraial de certa importância, o arraial do Chumbo. Em
meados do século passado, os moradores do povoado resolveram construir outro
arraial, em local mais aprazível, distante cerca de 20 quilômetros. Construíram
inicialmente nova capela, dedicada a N. S. das Dores, e levantaram o arraial,
que ficou sendo chamado Areado; e, abandonada, ficou a capelinha do Chumbo,
tendo desaparecido o primitivo arraial (De um relatório do Vigário da Vara de
Dores do Indaiá, pe. Elias José de Barros, datado de 21 de abril de 1885). O
local do antigo povoado passou a ser designado por Capelinha do Chumbo. Aos
poucos, porém, com o correr dos anos, foi-se formando novo povoado, muito
lentamente, já no município de Patos de Minas, [que] foi elevado a distrito,
pela lei nº 2.764, de 30 de dezembro de 1962, com a denominação de Major Porto.
É distrito de Patos de Minas (Barbosa 1971).
Capelinha do Chumbo é fim de linha, isto é, a
estrada que a liga a Patos de Minas termina nela, o que faz com que não seja
cruzada por forasteiros. Seu contato com locais mais “adiantados” é quase
exclusivamente com Patos de Minas. Quando não, trata-se de filhos do lugar que
vão estudar em Belo Horizonte (ou mesmo em outros centros, como Uberaba, São
Paulo, etc.). Não sendo lugar turístico, não recebe muita visita de gente de
fora. Afora isso, seu contato com um tipo de vida diferente do seu é mais pelo
rádio (ouvem-se mais os programas de São Paulo). As atividades típicas são a
criação de gado, de porcos, etc., e a lavoura. Mas tudo de maneira ainda muito
rudimentar, e quase só para a subsistência. Dificilmente se produz para vender
para fora. Na sede do distrito, “no comércio” (“na rua” ou “na praça”),
exerce-se um comércio pobre, com umas duas lojas de tecidos, umas três ou
quatro “vendas” (bares), uma farmácia e uma loja que
vende produtos manufaturados (“A Lojinha”), bem como uma máquina beneficiadora
de arroz. Não há energia elétrica, portanto não há seus derivados. Curiosamente
há telefones! Há, enfim, um grupo escolar, que funciona já há bastante tempo, e
um ginásio desde 1968.
Quanto a divertimentos e vida social não
difere muito de outras regiões do interior do Brasil. Na parte folclórica, no
entanto, não é das mais ricas, restringindo-se mais às crianças e adolescentes,
se é que se pode chamar de manifestações folclóricas brincadeiras como “Nego
Fugido”, “Passá Anel”, “Direito dos Tavar” (Tavares é o nome de um
povoado vizinho), brincadeiras de roda e outras. No plano dos adultos, creio
que a manifestação mais marcante seja a “Folia de Reis” e os festejos de São
João, que tampouco são exclusivos do local. No mais, trata-se, em geral, de
tradições em torno da Igreja, pertencendo, portanto, ao folclore cristão, quase
universal (cf., por, exemplo, Salum 1953).
Não há muita diferenciação social entre
os habitantes da zona rural e os da urbana. Isso devido ao fato de todos os
habitantes desta serem também oriundos do meio rural, “da roça”. Diferenciação
social quase não há também dentro da zona urbana: praticamente não há níveis
diastráticos. Toda a comunidade forma um bloco homogêneo, quase um clã, ou uma
família única: todo mundo conhece todo mundo. [O pouco de diferença que há é de
nível econômico].
Sendo uma sociedade que quase não usa a
linguagem escrita, estaria mais próxima do nível das sociedades primitivas,
sobre as quais Claude Lévi-Strauss diz, de passagem embora: “O domínio da
antropologia, diz-se de bom grado (...), consiste nas sociedades não
civilizadas, sem escrita, pré ou não mecânicas. Mas todos
estes qualificativos dissimulam uma realidade positiva: estas sociedades estão
fundadas em relações pessoais, em ligações concretas entre indivíduos, num grau
muito mais importante que as outras” (Lévi-Strauss 1970: 390). Com exceção do “não
civilizadas”, creio que o que ele disse se aplica muito bem à comunidade
capelinhense. Assim sendo, a zona urbana não apresenta denominações em seus
logradouros, ruas etc. Com exceção do bairro Catiara e o das Batatas (devido ao
fato de estar às margens do córrego deste nome), nenhuma localidade tem nome.
Uma vez que as “ligações concretas entre os indivíduos” são muito marcantes, já
que a comunidade forma um bloco, as referências a locais se fazem pelo nome dos
moradores. Alguém mora além ou aquém de fulano, perto do bar de beltrano, e
assim por diante. O “Dodô” mora perto do “cimintéro”, o “Chiquéte” mora “prá
cá” do “Grupo”, o “Zé Professor” mora perto do “Jorge da Lojinha” etc. Os
telegramas e cartas vêm endereçados assim:
Divino do Zé Agustim
38.710 Major Porto-MG.
A vida econômica, como não poderia deixar de ser,
também é bastante simples.
Poder-se-ia dizer que é quase toda na base de
troca, pelo menos o é em larga escala. O dinheiro
não tem muita corrência (se se pode dizer
assim). Alguém tem um frango e precisa de
certa quantia de arroz, então procura outrem com quem possa “catirá-lo”. O dinheiro surge, e é necessário [para os capelinhenses], só quando têm que comprar algo na venda
ou na loja (=loja de tecidos). Nem pão compram, pois fazem “bolos”, “pães-de-queijo” em casa; às vezes o próprio queijo serve para se
tomar com café. Esse relacionamento
direto, sem intermediário do dinheiro, é tão marcante que há até algumas expressões típicas para designá-lo:
Vamo catirá os cavalo? (“catirá” =
trocar)
ou
Vamo breganhá os boi? (“breganhá” = barganhar)
Quando alguém promete ir trabalhar para
outra pessoa e não vai, diz-se que “bateu a pedra”. Se uma pessoa “catira”
alguma coisa com outra e “passa a manta nela” (sai levando a melhor), aquela
pode “ingulí a lobêra” (voltar atrás). Tudo isso já nos permite vislumbrar uma
unidade linguística e cultural da comunidade.
Sendo o relacionamento
social de indivíduo a indivíduo muito intenso e a
comunidade quase autossuficiente (com pouco contato com outras comunidades), a
sua linguagem é predominantemente falada.
Mesmo sem contar o grande número de pessoas analfabetas ou semialfabetizadas, o uso da
linguagem escrita é um caso excepcional. Quando
compram “fiado” na “venda” ou na “loja” o dono “debita” na conta. E assim “debitá” passou a significar “escrever”, pois esta é a única forma de escrita que
entra em sua experiência linguística diária. Quando não, dizem “assentá”. Várias pessoas ao me verem
anotando alguma coisa me perguntavam o que estava “debitano”, outros indagavam o que eu
estava “assentano”.
O que disse no final do parágrafo
anterior já deixa vislumbrar algumas características da linguagem capelinhense:
altamente telúrica, bastante ligada à experiência com o meio físico e
social. Isto permite entrever outra característica da linguagem local: um
acentuado pragmatismo no uso da linguagem, que se pode ver no caráter em
geral taciturno das pessoas. É claro que há os mais tagarelas (letéques),
os contadores de “casos” (lá não se diz “causo”), mas mesmo neste caso o uso da
linguagem é telúrico e pragmático.
Poder-se-ia argumentar que tudo isso são
truísmos, que tudo o que disse sobre o falar capelinhense aplica-se à linguagem
de qualquer comunidade! Vejamos o que diz a respeito de um desses tópicos
Claude Lévi-Straus: “... falamos continuadamente, qualquer pretexto nos serve
para nos expressarmos, interrogarmos, comentarmos.... Esta maneira de abusar da
linguagem não é universal; nem é mesmo frequente. A maior parte das culturas a
que chamamos primitivas usa da linguagem com parcimônia...” (Lévi-Strauss 1970:
85). É claro que no caso presente isto não se aplica com tanta força, mas
exemplifica uma tendência.
Talvez valesse a pena recapitularmos com
o mesmo autor as relações existentes entre a linguagem e a cultura, antes de
prosseguir. De acordo com ele “pode-se, inicialmente, tratar a linguagem como
um produto da cultura: uma língua, em uso numa sociedade, reflete a
cultura geral da população. Mas num outro sentido, a linguagem é uma parte
da cultura; constitui um de seus elementos, dentre outros”. Mais adiante
acrescenta: “...pode-se também tratar a linguagem como condição da
cultura .... visto que é sobretudo através da linguagem que o indivíduo adquire
a cultura de seu grupo.....” (Lévi-Strauss 1970: 85). J. Mattoso Câmara Jr. faz
uma síntese muito boa da relação linguagem-cultura:
1. A língua é parte da cultura; 2. É,
porém, parte autônoma, que se opõe ao resto da cultura; 3. Explica-se até certo
ponto pela cultura e até certo ponto explica a cultura; 4. Tem, não obstante,
uma individualidade própria, que deve ser estudada em si; 5. Apresenta um
progresso que é o seu reajustamento incessante com a cultura; 6. É uma
estrutura cultural modelo, que nos permite ver a estrutura menos nítida,
imanente em outros aspectos da cultura (Câmara 1972: 273).
Sendo, como vimos, o relacionamento
língua-cultura tão íntimo, é claro que a língua deve refletir aspectos
da cultura, como atitudes, tipo de vida, costumes etc.
Este estudo é, portanto, uma tentativa de
visão sociolinguística da comunidade de
Capelinha do Chumbo.
Afirma-se frequentemente que o objeto da
Sociolinguística é “descobrir a covariação sistemática entre a estrutura
linguística e os fatos sociais que motivaram as variações do sistema
linguístico” (Vandresen 1973: 6). William
Bright, um dos mais importantes sociolinguistas, diz que “the sociolinguit’s
task is to show the systematic covariance of linguistic structure and social
structure - and perhaps even to show a causal relationship in one direction or
the other” (Bright 1966).
Com os dados
apresentados acima, minha intenção foi simplesmente dar uma imagem, ainda que
muito pálida, das condições de vida de Capelinha do Chumbo a fim de
relacioná-la com sua linguagem. Assim sendo, o que pretendo fazer é tentar
mostrar que aquela simplicidade de condições de vida, aquele telurismo e
pragmatismo linguísticos delas decorrentes, enfim, que aquela coesão social que
faz da comunidade um único bloco, uma única família, reflete-se na linguagem,
está em sintonia com ela. O fato já mencionado de que não há nomes para
logradouros públicos e para os acidentes geográficos urbanos é revelador. Não
há necessidade de se porem nomes nas ruas nem, consequentemente, número nas
casas porque todo mundo conhece todo mundo. Como disse Edward Sapir, “a mera
existência, por exemplo, de uma espécie animal no ambiente físico de um povo
não basta para fazer surgir um símbolo linguístico correspondente. É preciso
que o animal seja conhecido pelos membros do grupo em geral e que eles tenham
nele algum interesse (grifo meu [- HHC]), por mínimo que seja” (Sapir
1969: 45). Onde Sapir disse “animal”, entenda-se “acidente” e/ou “logradouro”.
Isto é, no caso presente não houve necessidade e, consequentemente não houve
interesse em nomear os aspectos do ambiente mencionados. Os logradouros de
Capelinha do Chumbo estão intimamente associados às pessoas e são referidos por
referência a elas.
Tentarei mostrar
este reflexo da cultura na língua, ou, dito de outro modo mais técnico,
tentarei mostrar esta covariação entre língua e cultura nos diversos aspectos
sob os quais a língua pode ser estudada, tomando-se o termo “variação” não no
sentido de genético, evolutivo ou diacrônico, mas como diz o já citado William
Bright, no de que “such variation or diversity is not in fact ‘free’, but is
correlated with systematic social differences”. Assim, tentarei fazer ver que
as características sociais, ou culturais, estão correlacionadas com
características linguísticas, tão marcantes quanto aquelas. Eis os níveis da
linguagem de que tratarei:
1. Sintagmática: combinação de elementos
no enunciado.
1.1. Sintaxe: combinação de palavras
1.2. Morfologia: combinação de elementos de palavras
entre si (radicais, afixos, desinências, etc.).
2. Léxico.
2.1. Onomástica: estudo dos nomes
próprios.
2.1.1. Antroponímia: estudo dos nomes de
pessoas
2.1.2. Toponímia: estudos dos nomes de lugares
2.1.3. Zoonímia: estudo dos nomes de animais
3. Fraseologia: estudo de expressões
cristalizadas
4. Fonologia: estudo do significante
fônico
4. Fonologia segmental
4.1. Consoantes
4.2. Vogais
4.3. Semivogais
4.4. Estruturas silábicas
4.5. Prosódia
5. Conclusão.
Transcrevamos um diálogo espontâneo
travado entre um de meus acompanhantes durante a pesquisa, o Zé Professor, e
outro habitante do lugar, Rémundo Ferrera. Este último não sabia que a gravação
estava sendo feita. Só posteriormente é que ele foi cientificado do fato e não
opôs nenhum obstáculo a que se mantivesse a gravação. Como se pode ver, o
diálogo está todo fragmentado, apresentando interrupções, hesitações,
redundâncias próprias de uma conversa ao natural, isto é, da “linguagem em
situação”. Como se verá depois, todos esses “defeitos” são explicáveis pelo
“contexto da situação” (Malinovski 1972) em que o diálogo se deu.
Para maior facilidade de
compreensão para quem não presenciou o diálogo ou não tem um conhecimento mais
profundo dos costumes de Capelinha do Chumbo, após a transcrição fiel (na medida do que é possível reproduzir um texto de
uma conversa vários dias depois da data em
que ela se deu) do texto, apresento uma reelaboração que, creio, não trai o assunto da conversa.
Diálogo entre Zé Professor e
Remundo Ferrera
- Começo ininteligível
1. ZP - Então, ach’ qu’ sinhor mora lá
pert’ daquele... Tuninh’ Calisto?
RF - Tunim Calisto? Ih, é muito longe!
Tunim tá lá ... im cima!
ZP - Lá p’u lado do Chapadão, né?
RF - É! Não, el’ tá é... tá ‘qui, entre o Muinh...
ZP - O Cedro, né?
RF - É, o Cedro. Tá lá no Cedro, lá na frente...
Terceiro - O Chapadão..... (ininteligível)...
8. RF - Pu Óstaqu’ aqui é mais face
purquê es transita ali... , lá no Tunim Calisto, né? Es vem
munto no Juaquim do Zé Calist’ ali ....
É mais face eu inviá um récado dali.
ZP - Es tev’ aí perguntano, mas eu num
sabia!
RF - É?
ZP - Ontem qu’eu fiquei sabeno
RF - É? Antão é bão, ô Zé... vim?
ZP - Uai, isso é vantage p’u sinhor.
RF - É?
ZP - Traz o atéstado do quarto ano...
RF - É?
ZP - E ... e o rigistro.
18.RF - E o rigist’ ... de nascimento?
Agora as minina - aquela.... a Eni e o ...., Zé, e o ... e a
- aquela do cumpá’a Luís - pirguntô s’eu
vinha cá hoje. Falei: “Ah, vô!” A Eni falô: “Ó, sinhor pricura lá o Zé, papai
..... - aquel’ negóc’ do diploma dela -
ZP - Tá lá im casa.
20.RF - Tá! Antão a hora qu’eu saí,
semp’ dá u)as volta aí,
mais tarde ... eu indá vô demorá aí,
isperá vê s’o carr’ chega e....e antão
na hora de saí nóis passa lá, né? ... Se eu .... o daqué’a minina do cumpá’a
num tá lá não?
ZP - Tá. Se eu num ‘tivé lá o sinhor
pega com a Dalva
RF - É? Pode pidí sua muié, né?
ZP - É.
RF - Sei. Não, mais o cert’ é qui cê tá, né? Dipois nóis tromba aí, viu?
ZP - Agora, se o negoc’ do minino, o sinhor resolve
lá, né?
RF - Sei. Sigunda....?
ZP - Sigunda agora.
28.RF - Cê acha, Zé, qui...., eu tô
achano assim qui esses caminh’ aí tá muito rúim, mod’ eles
... só se... pa vim só ele pr’ aqui,
fica assim mei’ difice, cê acha qui num... num é importância levá já no....
direto? Purquê ele é mei’ assim... mei’ assim... distraíd’ eu agora... assim;
intão eu ta’a pensano .... pensano qui levam’ as minina tudo lá pus Pato, cê sabe!
Mais aí eu pensei: “Ah, isso fica muit’ pesado pra mim. Fica um muncado lá e
ela... chega essa qui é mais véi’, fica aí pa i tintian’ es”, cê sabe! Es fica
um muncado aqui e vai duas pra lá, né? Até a gente ajeitá....
ZP - De qualquer maneira tem u)a provinha!
RF - Tem?
ZP - Tem!
RF - Sei!
ZP - De qualquer manera tem uma provinha.
RF - Tem? Agora el’ pod’ dexá aques minino fazê a prova assim...
ZP - Se... (ininteligível)... pode!
RF - Pode?
ZP - Pode.
39.RF - Não, antão é capá’ ... então
s’ele ... s’ele ... quand’ ele, - ó Déc’ - quand’ ... s’ele incontrá, né?
Purquê aí fica mais face.
Terceiro - (ininteligível)....
41.RF - É! ... É. Mais aí ele, oceis já
vai, é um dia, e a gente vai... vem u)a minina cum ele...
vai... e acho mió que s’ele ficá aqui eu
fico pensano assim.... qui ele fica aqui, ele dana brincá com essa mininadinh’
aqui (tem aquele fio do Tõezim ali, ó!) e ele ... né?, Zé!
ZP - É.
43. RF - E ele sozim aí, ele num fais
nada. ...’quê o ano passado já ... cê inda me falô: “Trais
ele!”, eu falei: “Ah, eu vô dexá mais,
‘quê meno ele panha mais um.. “né?”, mais u)a idá’ ... mais um ano de idáde, por exempo,.... já pensa mais”,
ele, ele é... ele é muito, até assim na leitura num dá trabai’ não, mai p’ocê
.... assim pa, el’ num....
44.ZP - (ininiteligível)
45.RF - É! Tá ‘í is ... contan’ ele, isprican’ ele cum’ é qui é aquilo e ele fica assim
distraído, né?
Aquel’ trem isquisito! Num... ah...
tre.... atualmente os minino tudo, quas’ tudo são assim, né? Mais uns men’
pensa istudá, né?
P - É!
RF - Não, pois então nóis vamo... nóis vamo fazê assim... mais na véspa da prova aqui ocê me av..., ocê me conta, viu?
ZO - Tá!
.......................................................................................
Reelaboração do diálogo
Vou explicar só as partes mais
complexas, com muitas intercalações, ou então que necessitam de um conhecimento
da situação em que o diálogo se deu.
A fala nº 8 de RF é o seguinte:
“Para o Eustáquio aqui é mais fácil
(estudar aqui em Capelinha do Chumbo e não em Patos de Minas) porque eles vão
freqüentemente à casa do Toninho Calisto, à do José Calisto... Portanto é mais
fácil para eu enviar um recado” (Toninho Calisto mora perto de RF).
A de nº 18:
“(Traz o atestado do quarto ano...) e o
registro de nascimento. Está bem. Mas, as meninas (a Eni e a do compadre Luís)
me perguntaram se eu vinha aqui (Capelinha do Chumbo) hoje. Eu lhes disse que
vinha e a Eni me pediu que perguntasse a você pelo diploma dela”.
Fala de nº 20:
“Está bem. Eu ainda vou dar umas voltas,
vou ficar até a hora de o ônibus (de Patos de Minas) chegar. Quando formos
embora passaremos em sua casa porque você disse que o diploma da filha do
compadre Luís está lá”.
Fala nº 28:
“Como esses caminhos (entre minha casa e
Capelinha do Chumbo) estão muito ruins, fica muito difícil para ele vir
sozinho. Eu estava pensando em levar todos eles para Patos, o que você acha?
“Mas”, pensei, “isso fica muito pesado para mim, assim sendo ficam alguns lá,
como a mais velha, e outros ficam aqui para ir equilibrando a situação. Um
pouco aqui e duas lá”.
Fala nº 39:
“Não, então, ó Décio, se ele
encontrar.... fica mais fácil”.
Fala nº 41:
“É melhor vir uma menina com ele porque
se ele ficar aqui, penso, ficará brincando com essa meninadinha daqui, como por
exemplo, com aquele filho do Tõezinho, e assim não fará nada”.
Fala nº 43:
“Ele sozinho aí não fará nada. O ano
passado você me falou para trazê-lo, mas eu esperei ele ficar um pouco mais
velho, porque assim já pensa um pouco mais. Mas ele, que na leitura até que não
dá trabalho, é um tanto.....”
Fala nº 45:
“... distraído. Às vezes você está
explicando alguma coisa para ele e ele nem presta atenção. Atualmente os
meninos todos são assim, não é? Mas alguns pelo menos pensam em estudar”.
1. SINTAGMÁTICA
1.0. Introdução
Tomarei o termo sintagmática para
designar o estudo de signos copresentes em um enunciado, e as relações
existentes entre eles. Portanto, está bem próximo da Sintaxe, mas não é
só Sintaxe. Observando um enunciado como “Lá im casa tem frang’ sorto”, veremos
que todas as palavras se relacionam entre si: o objeto da Sintaxe é o estudo do
relacionamento das palavras de um enunciado. Mas, em um elemento de enunciado,
como “chamano”, podemos notar o relacionamento de três partes de palavra entre
si: “cham-”, “-a-” e “-no”. Estes elementos são morfemas, partes de palavras.
Como este tipo de estudo vem sendo implicitamente chamado de Morfologia,
não vejo porque não continuar a usar o termo para designá-lo.
Em síntese, para as finalidades deste
trabalho, Sintagmática será o estudo do enunciado como:
a) um conjunto de palavras (no enunciado
como um todo);
b) um conjunto de morfemas (dentro da
palavra).
No primeiro caso temos o
objeto da Sintaxe, no segundo, o objeto da Morfologia. Isto é, Sintaxe será
entendida como o estudo das relações entre palavras e Morfologia será entendida
como o estudo das relações entre os morfemas ou, dizendo de outra maneira, será
entendida como o estudo das relações entre os elementos de palavras, portanto,
flexões e afixação, no caso do Português.
Após este estudo dos elementos do
Sintagma, estabelecemos classes de elementos que têm algo em comum, ou que são
comutáveis na mesma posição, e estabelecemos paradigmas, objeto da Paradigmática
(Saussure 1971: 170-175, 185-188).
Na Sintaxe examinarei problemas como concordância,
regência, colocação (ou ordem das palavras), a estruturação da frase,
interrupções de enunciados, etc. Tentarei mostrar que todos estes itens se
organizam de modo a servir a uma maior simplicidade, uma maior facilidade de
comunicação em situação marcada, além de se explicarem por ela.
Talvez fosse conveniente esclarecer que
a divisão da Sintagmática em Sintaxe e Morfologia está no nível da norma
de que fala Eugênio Coseriu, pois no nível do sistema, também de
Coseriu, só se pode falar em Sintagmática, pois trata-se de um nível mais alto
de abstração. Neste nível só se considera o relacionamento de signos
copresentes em um sintagma (Sintagmática) e entre signos que podem aparecer no
mesmo lugar do sintagma por terem algo em comum pelo significante, pelo
significado, pelos dois ao mesmo tempo ou pela distribuição, constituindo
classes ou paradigmas (Paradigmática). Só no nível inferior de abstração
(norma) é que se considerarão os elementos não mais como signos mínimos
(morfemas), mas como palavra e é neste nível que surge o objeto de estudo da
Sintaxe e da Morfologia (Coseriu 1967: 11-113). De um ponto de vista
estritamente teórico, sem vistas à aplicação a esta ou àquela língua,
poder-se-ia fazer uma análise de uma língua como um conjunto de morfemas, sem
levar em conta a divisão em palavras. Mas, para o caso do Português e das
línguas europeias de um modo geral, deve-se considerar a palavra, é possível,
útil e necessário um estudo tendo-a como unidade.
1.1. Sintaxe
Transcrevamos alguns
enunciados e analisemo-los. Há muitas dificuldades, pois há muitas
interrupções, trechos incompreensíveis para uma análise a posteriori. No
cômputo geral, no entanto, pode-se depreender a estrutura frasal da linguagem
capelinhense através deles.
Alguns dos enunciados
transcritos foram tirados do diálogo apresentado na Introdução. Outros constam
de outros diálogos, alguns gravados secretamente, outros com o conhecimento dos
interlocutores.
1. “Tunim tá lá... im cima”
2. “Pu Óstaqu’ aqui é mais face purque es
transita ali... no Tunim Calisto, né?”
3. “Es vem munto no Juaquim do Zé Calist’
ali.....”
4. “Agora, as minina -- aquela... a Eni e o,
Zé, e o ... e a -- aquela do cumpá’a Luís -- pirguntô s’eu vinha cá hoje.
Falei: ‘Ah, vô!’ A Eni Falô: Ó, sinhor pricura lá com o Zé, papai ... ---
aquel’ negóc’ do diploma dela -- “
5. “Nóis istudô ... foi aqui na
Capilinha mezmo. u)a hora era ali
naque’a casa do Juca Boa, teve uns dia qui foi na... nu)a casa cumprida qui tinha aqui”
6. “Ah, nem lembr’ direit’ não! E’a
Ozona...”
7. “Teve uns tempo... lá na iscola dum tal
Montero, num sei se seu pai teve não, num lemb’ não!”
8. “Ah, é mesmo, sô! Maria Rosa, é!”
9. “Uai! Num sei que qui não! ... ‘sê
biscoit’ e doce, né?”
10. “Num sei s’é fulia tamém, ele convidô
nóis pa í lá na casa dele ajudá rézá um terço, num ispricô de quê nem coisa
ninhuma, né?”
11. “Não, mais aí se ele fô... cê tem qui
fazê ota condução pr’ocê, purque o carr’ dele ...... só pra nóis ind’ é poco!”
12. “Nasci foi aqui!”
13. “... não, o cumpad’ Zé.... --- a gente ia
pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i ... pa casa dele pa
nóis réfrescá do sole...; e se tivesse de chuva.... e pur lá nóis ficava o dia
tamém. Num vortava”.
14. “Quando num tomava, dava era u)a dor de cabeça qui Deus me live!”
15. “Ô morto, ô atirado... ô...., né?”
16. “Trabai’ de... de capiná”
17. “Mais... naquela épuca, Agusto
Varejão tava fazeno o Tiro -- ele e o Déro Amaro --, então viero aqui de
passeio, nós munto amigo, fom’ criado junto aí! Ez: ‘Vam’ fazê u)as prisão aí!? -- Vamo!”, mulécage,
cachaça! E descero aí, prendemo o.... o Zé Timóte”.
1.1.1. Período
Vejamos primeiramente a estrutura dos
períodos. Tomarei o termo período para designar um enunciado completo
que termina por uma pausa bem marcada.
Frequentemente
há intercalação de um período dentro de outro, como mostram os enunciados nº 4
e 17. No de nº 4 temos mesmo um pequeno diálogo dentro de um período. Seria o
processo sintático a que os construturalistas chamam subordinação,
constituindo o que chamam de récita, isto é, “uma subordinação semântica
de cláusula aglomerada a período” (Back & Mattos 1972: 38, 502 e passim).
O de nº 17 apresenta, além da subordinação de cláusula aglomerada a período,
várias orações subordinadas a outras orações, além do fato de se iniciar por um
conetivo. Analisando a estrutura destes períodos veremos que são muito
complexos, não há uma conexão fonossêmica (de significante e de significado)
(Couto 1974). A ligação entre as partes constituintes dos períodos se faz
semanticamente apenas, sem uma palavra (no sentido popular do termo) para
expressá-la. Vejamos, por exemplo, o período nº 4: “Agora, as minina .......
dela”. Sem contar o problema das hesitações, das interrupções e das correções,
o que ligaria, por exemplo, a oracão a) “as minina, a Eni e a do cumpá’a Luís,
pirguntô (s’eu vinha cá)”, b) “falei: (Ah, vô!)”, c) “A Eni falô: ó sinhor
pricura lá o Zé...)”, d) “aquel’ negóc’ do diploma dela”? Só pode ser a
entoação, mas isto [a decodificação do enunciado] só se tornou possível devido
ao contexto da situação de que nos fala o antropólogo Bronislaw Malinovski
(Malinowski 1972: 295-330).
Em outros termos, a comunicação só se
efetuou devido ao fato de os interlocutores pertencerem ao mesmo contexto
cultural em que o diálogo se deu. O fato de o enunciado estar aqui transcrito,
isto é, desligado do contexto ou do texto a que pertence (ao diálogo como um
todo) não contradiz o que afirmei. Tanto assim que se pode ler o texto completo
transcrito na Introdução e se verá que não ajudará muito. Isto é, a compreensão
só se efetuou devido ao pragmatismo linguístico, devido ao telurismo que me
proponho mostrar. Sem a vivência prévia da situação (no sentido de Malinowski)
o contexto linguístico de quase nada nos valeria. Só se descobrirá a conexão
entre as orações se se apresentar a situação em que o diálogo foi proferido.
Para tanto, remeto ao resumo ou reelaboração que apresento logo após a
transcrição do texto original. Na medida do que me foi possível transcrever da
fita magnética, o texto é tal qual foi proferido.
Poderíamos aumentar os exemplos, fazendo
uma longa lista de casos como estes e de outros diferentes na aparência, mas de
mesma natureza, isto é, que surgiram [e foram entendidos] devido à experiência
prévia da situação em que o diálogo se deu. Por exemplo, examinemos o enunciado
de nº 17 que, aliás, pertence a um senhor de 70 anos, semianalfabeto, mas muito
lúcido e o maior contador de “casos” de Capelinha do Chumbo, o senhor Antônio Paulista
(Antõe Polista ou Tõe Polista): “Mais.... naquela épuca, Agusto Varejão tava
fazeno o Tiro – ele e o Déro Amaro –, então viero aqui de passeio, nóis munto amigo,
fom’ criado junto aí... Ez: ‘Vam’ fazê un-as [“u” nasal seguido de “as”] prisão
aí? - Vamo! -- Mulecage, cachaça! E descero aí, prendemo o ... o Zé Timóte”. De
“Mais” até “Tiro” temos uma oração; o sujeito é repetido em forma de substituto
em “ele e o Déro Amaro”, que vão constituir o sujeito da oração seguinte,
“então viero aqui de passeio”, cuja ligação com “nóis, munto amigo, fom’ criado
junto aí” não está explícita. O mesmo pode-se dizer da conexão entre “Ez: -Vam’
fazê un-as prisão aí?” e o que precede, que, como já disse, constitui um
pequeno diálogo dentro de um período. E assim por diante. Poder-se-ia dizer que
aqui (no nº 17) têm-se vários períodos e não um só. Recordemos, então, o que se
entende por “período”: é um enunciado completo que termina por pausa bem
marcada. Pois bem, pausa bem marcada só existe depois de “Zé Timóte”. Aliás,
diga-se de passagem que uma contestação a este critério (identificar unidades
sintáticas pela prosódia) só seria feita por aqueles que ainda não perceberam
que a língua é primeiramente falada e só em segundo lugar escrita. Não devemos
nos deixar levar pelos sinais gráficos que podem ser muitas vezes arbitrários.
O enunciado foi emitido com um só movimento de prolação, terminando onde já
indiquei. De um ponto de vista ideal, desligado da situação concreta em que o
diálogo se deu, de fato, a divisão em orações e em sintagmas nominais,
sintagmas verbais e sintagmas circunstanciais segundo a terminologia de Bernard
Pottier (Pottier, 1969, 13-15) seria diferente. De “Mais” até “Tiro” teríamos
um período (pausa), marcado na escrita por ponto final; de “nós” até “aí”
teríamos outro período composto de duas orações ou um período simples,
dependendo do tratamento que se desse à sequência de palavras “nós, muito
amigo” (“nós era munto amigo” ou “nós, munto amigo”, como está no original). E
assim por diante, não é necessário continuar. No entanto o diálogo se deu em
uma situação concreta, o informante se prontificara em me contar uma série de
“histórias” acontecidas em Capelinha do Chumbo.
Assim vimos que só o contexto da
situação, portanto, um caso de linguagem intimamente ligada ao ambiente
cultural em que é falada, pôde explicar a estrutura de alguns períodos que de
outra forma ficariam inteiramente incompreensíveis, principalmente o de nº 4. O
de nº 17 é mais compreensível, mas mesmo ele apresenta trechos em que só o
entendimento através do contexto sociocultural pôde explicar. Dentre estes
casos, destaque-se o das conexões entre as orações ou entre estas e palavras
que, como vimos, de outro modo não se explicariam.
1.1.2. Oração
Passemos ao item seguinte da Sintaxe, o
da estrutura oracional. Tomemos o enunciado de nº 13:
“... não, o cumpad’ Zé...., a gente ia
pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i.... p’a casa dele pa
nóis refrescá do sole..... e se tivesse de chuva..... e pur lá nóis ficava o
dia tamém. Nur vortava”.
Esse enunciado
apresenta dois períodos ligados entre si pela ordem, isto é, pela sequência de
um após o outro, e também pela entoação. Mas, além destes interstantes (Couto
1972: 3-6) temos ainda uma conexão estabelecida pela concordância de pessoa. De
fato, o predicado da oração absoluta (na terminologia gramatical brasileira)
“vortava” tem como sujeito o mesmo [sujeito] de “i” (ir), “refrescá” e
“ficava”. Só isto (o fato de terem o mesmo sujeito) seria bastante para
estabelecer uma conexão semântica entre os dois períodos. E a conexão
fonológica, no plano da expressão, está estabelecida pelos interstantes ordem
e entoação. Assim tem-se uma conexão fonossêmica entre eles, isto é, uma
conexão no plano do significado e no plano do significante. Mas, os gramáticos
ainda não quiseram ver um fato tão óbvio. Passemos às orações.
Tomemos o primeiro período e
partamos do pressuposto de que um período conterá tantas orações quantos forem
os verbos nele existentes. Ele tem sete verbos: “ia”, “tivesse”, “chamava”,
“í”, “refrescá”, “tivesse” e “ficava”, portanto, deverá conter sete orações.
Podemos, realmente, distinguir as sete, mas temos que explicar alguns
fenômenos, alguns “anacolutos” e quejandos a fim de chegarmos ao núcleo, à
“estrutura profunda” (Chomsky 1972: 44 ss.). Feito isto, identificamos as
seguintes orações:
1. “a gente ia pa roça”
2. “se tivesse de sole quente”
3. “ele chamava”
4. “pa nóis í pa casa dele”
5. “pa nóis refrescá do sole”
6. “se tivesse de chuva’
7. “pur lá nóis ficava o dia tamém”
Do ponto de vista da ordem dos diversos
elementos que compõem uma oração (sujeito + verbo + complemento) não há nada de
especial. A estrutura é potencialmente a mesma do Português Literário (digo
“Literário” no sentido de altamente formal). Ainda aqui, o que haveria para
comentar em primeiro lugar seria a estrutura periodal. Mas mesmo a respeito da
oração há fatos dignos de nota.
Tomemos a oração nº 3: “ele chamava”.
Não levando em conta o fato de “chamá” estar sendo usado intransitivamente,
devido ao uso do pronome-sujeito que vem logo após ele e que semanticamente é
seu objeto, há o problema do “ele”. Sua existência pressupõe a de um
antecedente. Assim temos explicado o “anacoluto” que aparece logo no início.
Não existe termo desligado num enunciado “aceitável” (Chomsky 1971: 13) para o
falante e principalmente para o ouvinte. No caso, a função do elemento que para
as gramáticas tradicionais seria um “anacoluto” é ser um antecedente para
“ele” da oração nº 3. Talvez o fato mais marcante, no plano oracional, seja
o que se verifica na oração de nº 6, “se tivesse de chuva...”, que estaria incompleta.
É uma oração subordinada cuja principal, ao que tudo indica, não aparece.
Acontece que ela está suprida pela pausa, pela entoação e, o que talvez seja
mais importante, pelo perfeito paralelismo existente entre principais e
subordinadas no período como um todo. De fato, podemos estabelecer uma
proporção que explicita esta simetria. Deixando implícito “o cumpad’ Zé, ... a
gente ia pa roça”, temos (cada bloco - I, II, III - devem ser lidos na
vertical, nessa ordem):
I II III
se tivesse de sole quente se
tivesse de chuva e por lá nóis
ficava”
ele chamava pa nóis i
pa idem
casa dele pa nóis refres- idem
cá do sole idem
Quer dizer, o paralelismo
que nos permite uma formalização como a acima feita deixa patente que depois de
“e se tivesse de chuva” só pode vir a mesma sequência que é a principal de “se
tivesse de sole quente”. Não se trata de oração elítica. Como já tentei mostrar
em outro lugar (Couto 1972a), não existe elipse. Sempre que um falante emite
uma mensagem e esta é compreendida pelo ouvinte, nada estará faltando. Pode-se
mostrar o fato reorganizando o enunciado, como propus no trabalho acima:
a b c
Não, o cumpad’ Zé, .... a gente ia pa
roça, se tivesse de sole quente,
c’
d’
ele chamava pa nóis í.... pa cada dele
pa nóis refrescá do sole...
d”
d c”
se tivesse de chuva......., e pur lá
nóis ficava o dia tamém
Lendo o enunciado na “ordem direta”,
reorganizando-o, temos o seguinte (em que M é mensagem):
M = a + b + c + c’ + c” + d + d’ + d”
Isto é:
a = “Não o cumpad’ Zé”
b = “ a gente ia pa roça”
c = “se tivesse de sole quente”
c’ = “ele chamava pa nóis í... pa casa dele
pa nóis refrescá do sole”
c” = “e pur lá nóis ficava o dia”
d = “se tivesse de chuva”
d’ = “ele chamava pa nóis í pa casa dele”
d” = “e pur lá nóis ficava o dia tamém”
Portanto, nada há de monstruoso naquele
enunciado. Ele transmitiu uma mensagem num contexto cultural tão bem quanto o
faria o mais “escorreito” (desculpem-me o termo) dos enunciados. A propósito da
“pressão estrutural” na interpretação de sequências de elementos linguísticos
de interpretação duvidosa, valeria a pena ver o que diz Kenneth L. Pike (Pike
1971: 128-1149), embora com referência só ao plano fônico. E “pressão
estrutural” é o que nos permitiu interpretar as supostas sequências duvidosas
do enunciado capelinhense supra.
Tudo que apresentei para
explicitar a estrutura das orações componentes do enunciado 13 refere-se mais à
contextura, ao contexto do enunciado. Mas, como qualquer enunciado, além de ter
um contexto interno, está associado a uma situação, sua estrutura
(principalmente a semântica e sintática) se explica também e talvez
principalmente por ela. Assim, devido ao conhecimento prévio que havia (tanto
da parte do falante, como da parte do ouvinte) a respeito do fato narrado
bastaria um termo “isolado” aqui, outro “isolado” ali e teríamos a mensagem
captada pelo receptor. Outra vez temos o pragmatismo, o telurismo linguístico,
a profunda imbricação entre língua e cultura explicando uma aparente deformação
estrutural, ou uma aparente pobreza expressiva do emissor. Língua e cultura, ou
mais especificamente, língua (ou diálogo) e situação estão totalmente
envolvidos um no outro, principalmente a primeira na segunda, de tal modo que
uma não se explica sem a outra. Vejam-se as palavras de Claude Lévi-Strauss e o
“resumo” de J. Mattoso Câmara Jr apresentados na Introdução. Em situação (entre
os falantes) não houve necessidade da formalização aqui feita para se entender
o enunciado.
Em síntese, o enunciado que para um
gramático seria uma monstruosidade linguística explica-se não só por suas
relações internas perfeitas (cf. a formalização), mas também pelas relações que
apresenta com a situação ou, dizendo de outro modo, ele se explica tanto no
plano da expressão como no do conteúdo.
Tomemos outro enunciado, o de nº 9:
“Uai, num sei que qui não! ... sê biscoit’ e doce, né?”. Ele constitui uma
resposta à pergunta: “O que qui tem na festa lá hoje?”. O famoso “Uai” pode-se
dizer que coneta a resposta à pergunta, neste caso. A oração “Num sei que qui
não!” é realmente problemática. Constitui a sequência dos dois “quês” o que os
construturalistas chamam de “elementos ocasionais”, que no caso podem ser
“originais” ou, com mais probabilidade “acidentais”. Destes últimos dizem que
são “provocados por um lapso de memória ou por descuido e corrigidos de
imediato”. No caso foi corrigido “de imediato”, mas creio que o fato é
acidental pois os originais seriam mais intencionais, criações conscientes.
“Habituais”, que “são os usualmente repetidos pelo indivíduo para determinada
situação”, é que eles não são (Back & Mattos 1972: 23). A segunda oração do
período, “... sê biscoit’ e doce, né?” também tem uma estrutura bastante
dilapidada. A pausa, ou a curva entonacional que precede “sê” certamente é o
significante para o significado “deve ser”. O “né?” que encerra quase todo
enunciado dos capelinhenses seria uma espécie de apelo ao interlocutor, uma
solicitação de adesão, de uma confirmação, correspondendo a qualquer coisa como
“você não acha?”.
Todos estes fatos se
explicam pelo diálogo em situação cultural. No caso da primeira oração, o
falante poderia ter dito apenas “Num sei” e estaria sua mensagem compreendida
pelo ouvinte. O mesmo se pode dizer da segunda, em que bastaria ter dito
“biscoit” e doce, né?”, pois estes são as guloseimas mais frequentes na região.
Mais uma vez, temos o contexto da situação explicando uma aparente
desestruturação da linguagem. Digo “aparente” porque mesmo no caso da segunda
oração, na situação em que o diálogo foi proferido nada falta antes do “sê”,
pois como vimos, a entoação supre a ausência do significante (segmental).
Passemos agora a examinar
problemas de ordem dos elementos no enunciado, a regência e a concordância.
1.1.3. Colocação pronominal
Como já se pôde ver quando falei do
período e da oração, a ordem dos elementos não é muito diferente da dos
Português Literário, sem falar no nível da palavra, em que os elementos são
mais fixos, não admitem variações de posição. O que se pode salientar mais uma
vez é que há uma intercalação enorme de períodos, até mesmo de pequenos
diálogos dentro de um período maior.
Observando os
enunciados de número 2, 6, 8, 9, 10, 11, 13 e 15 da seção 1.1, vemos que
ocorrem frequentemente no início de qualquer período “ah!”, “Não”, e “uai”,
enquanto que no fim aparecem também com bastante frequência “né?” e “uai”. Dos
17 enunciados transcritos, temos dois iniciados por “ah!”, dois iniciados por
“não” e um por “uai”. No final, temos quatro “né?”. Isto é bastante significativo.
O “não” inicial não é negação, seu significado é bem próximo do significado de
“ah” e “uai”, também iniciais. É uma conexão com o enunciado do outro falante.
Poderíamos dizer que estas “partículas” iniciais ligam o enunciado de um
falante ao do outro, para manter a sequência, para não dar a impressão de que o
que se está falando nada tem a ver com o que o outro disse. O “né?” final seria
um sinal de humildade, uma solicitação de adesão, como já disse, e não uma
imposição (“O que eu disse foi isso e está dito!”). E tudo isso só existe numa
linguagem usada em situação bem marcada. Se bem que André Martinet tenha dito
que o tipo de linguagem ideal para ser estudado pela Linguística seja aquele
que depende menos do contexto, da situação, aqui o que interessa é justamente a
linguagem inextricavelmente ligada a uma situação cultural. E é esta ligação
que justifica a existência das partículas acima examinadas e cuja função, como
já vimos, é sempre “ligação”: a) do enunciado resposta ao enunciado pergunta;
b) do enunciado à situação (solicitação de adesão).
Com respeito à colocação pronominal não
existem as famigeradas regras do Português Literário consignadas nas
gramáticas: próclise, ênclise e mesóclise. A distribuição dos pronomes (sujeito
e objeto) é de suma simplicidade. Vejamos alguns casos:
1. “cê inda me falô: trais ele”
2. “contan’ ele”, “isprican’ ele”
3. “dexa eles dois”
4. “um home qui cê via ele”
5. “es transfiriu ele pa Lagoa Formosa”
6. “ele cunvidô nóis”
7. “o pai dess’ minin’ aqui pode ti ispricá”
8. “quando num tomava dava era un-a dor
de cabeça qui Deus me live”
Por esses exemplos podemos
inferir a colocação dos pronomes na linguagem capelinhense.
As formas oblíquas “ele”,
“nóis”, “ocê” vêm sempre após o verbo. A última não ocorre nos exemplos citados
acima, mas é frequente, ao lado de “te”: são alomorfes de um mesmo morfema. No
entanto, “te” (e “me”) ocorre sempre antes do verbo. Como se explica o fato?
Se a forma de função objeto
é idêntica à forma que ocorre como sujeito, sendo, portanto, tônica, virá
sempre após o verbo; é o caso de “ele”, “nóis” e “ocê” (alomorfe de “te”). Se o
pronome objeto tiver forma diferente da do pronome sujeito, será átono e virá
sempre antes do verbo; é o caso de “me” e “te”.
Isto é, obedecem a um
princípio muito simples, que se explica prosodicamente. Logicamente, não existe
aquela idiotice dos gramáticos de que “não se pode começar oração com pronome
oblíquo”; são perfeitamente possíveis e até frequentes enunciados como: “me dá
um copo d’água!”.
Em suma, só há uma regra de
colocação pronominal: se o pronome é tônico, virá após o verbo; se átono,
antes. Em geral imediatamente após ou imediatamente depois. A respeito dos
paradigmas pronominais, ver 1.2.1.
1.1.4. Regência
Com respeito à regência muito
pouca coisa há para se salientar. No enunciado 13 de 1.1 encontramos o verbo
“chamá” usado intransitivamente, o que pode ser um hápax. Além do mais,
como já vimos, o objeto direto dele seria “nóis”, mas como este “nóis” já
aparece logo em seguida como sujeito de “í” (ir), ficou uma estrutura
semelhante ao que alguns gramáticos chamam de sujeito acusativo, como em
“Mandei-o sair”. Só que aqui seria o reverso da medalha, isto é, objeto
direto nominativo, apesar da presença do “pa” antes dele, o que se explica pelo
uso da linguagem em situação marcada.
Num outro
enunciado, que não foi transcrito em 1.1, uma jovem senhora disse: “Ele agradô
dele!” (o primeiro “ele” é o filhinho dela, o segundo uma outra pessoa
presente), o que pode ser também um fenômeno ocasional, pois não o registrei em
nenhum outro momento. “Agradá de alguem” significa “gostar de alguém”.
Pode até ser uma “contaminação sintática”. Poderia aduzir expressões como “O
qui nós já fizemo, o que qui o Zé já fez, pois não merece...!”, “... quase toda
semana saí’ um na cuberta... ô morto, ô atirado” (=morto a tiros) e
outros. No geral não apresenta a linguagem capelinhense casos especiais dignos
de nota.
1.1.5. Concordância
O que é mais notável na linguagem
capelinhense pode ser encontrado naquilo a que as gramáticas costumam chamar de
concordância. Tanto assim que creio que vale a pena transcrever uma
série de enunciados a fim de introduzir esta parte dos estudos sintáticos.
1. “es transtita ali”
2. “es vem munto no Juaquim do Zé Calist’
ali”
3. “nóis istudô foi aqui na Capilinha mesmo”
4. “ele cunvidô nóis”
5. “intão viéro aqui de passeio”
6. “o que qui nós fizemo?”
7. “ intão pusemo ele adiente, levamo lá
p’aquela venda da isquina”
8. “es tudo era mez’ nossos colega de iscola”
9. “ceis sai lá im casa intão u)a hora, tá?”
10. “e intão na hora de saí nóis passa
lá”
11. “não, pois então nóis vamo fazê assim!”
12. “não, esses dia mem’ nóis tem’ u)’aí”
13. “tenh’ um, tenho um de dizoito ano”
Nesses 13 enunciados, considerados
representativos da linguagem local, pode-se notar, logo de início, que no que
concerne à concordância, a linguagem capelinhense é muito pouco redundante
(tomando-se a concordância em Português [Literário] como uma marca redundante,
uma vez que para concordar terá que haver no mínimo dois significantes para um
mesmo significado). Assim, se dizem “nóis istudô”, dizem também “ele cunvidô”,
usando a marca de pluralidade/singularidade só no pronome; o verbo permanece
invariável, com exceção da primeira pessoa singular, que em geral é diferente
de todas as outras (cf. 1.2. Morfologia), como se pode ver no enunciado 13.
O que significa isso?
Significa que, enquanto o
Português Literário informa a marca de número tanto no pronome quanto no verbo,
apresentando uma redundância de marcas, o falar capelinhense só emprega uma
marca, com evidente economia de significantes. Mas, há variações. Nos enunciados
5 e 7 aparecem “viero” e “pusemo” no lugar de “es veio” e “nóis pois”,
respectivamente. Como se explica o fato? Trata-se de uma variante da outra
forma. No entanto, observe-se que quando a marca de número já aparece no verbo,
não é necessário o pronome. O mesmo ocorre no caso da marca de pessoa. Em
“viero” e “pusemo” as marcas de número e de pessoa já estão no próprio verbo,
daí a desnecessidade de seu aparecimento em um pronome também. É um sistema
próximo do do Inglês.
Disso podemos concluir que
no Português Capelinhense o verbo pode vir precedido ou não de pronome: quando
o pronome aparece é para indicar as marcas de número e de pessoa, que nesse
caso não aparecem no verbo, normalmente. Tanto no presente como no passado (cf.
“es transita”, “ceis sai”, “ele cunvidô”, etc.).
Mas, e os enunciados 6, 11 e
12, em que aparecem “Nós fizemo”, “nóis vamo” e “nóis temo?” Bem, realmente
aqui temos uma duplicidade de significante para um só significado, portanto,
redundância. No entanto são três casos dentro de treze. O dado estatístico pode
não significar nada; talvez o argumento mais convincente seja o seguinte: como
os informantes estavam sabendo que conversavam com uma pessoa “culta”, “da
cidade” e, o que talvez seja mais importante, a presença do gravador, tudo isso
fazia com que assumissem uma atitude formal, calculada, perdendo muito da
espontaneidade. Formas como “nós fizemo”, “nóis vamo” e “nóis temo” são raras,
principalmente o “nós” que é visivelmente anormal naquela situação. São os
elementos “ocasionais esporádicos” dos construturalistas (Back & Mattos
1972: 23).
Isto é, mesmo um caso de
desvio da norma local se explica pela linguagem usada em situação (formal, no
caso).
Vejamos agora a concordância
nominal, uma vez que tudo que vimos até aqui neste tópico girava em torno da
concordância verbal (entre o sujeito e o verbo).
14. “você cunhece alguns”
15. “vamo fazê un-as prisão”
16. “uns povo mei’ criado”
17. “teve uns dia qui foi n’un-a casa
cumprida”
18. “tenho um de dizoito ano”
19. “as minina”
20. “sempre dá un-as volta aí”
21. “esses caminh’ aí”
22. “levava as minina lea p’us Pato”
23. “atualmente os minino tudo”
Como se pode ver, só recebem a marca de
número os determinantes. O determinado, o substantivo, nunca. Isso é regra
absolutamente geral, não há mesmo redundância desta marca. Quando, devido ao
contexto, um determinante passa a funcionar como substituto (pronome) do
determinado (substantivo), continua com a marca de número (“Você cunhece
alguns”). Inclusive, fato que é motivo de mofa por parte de pessoas de fora, o
caso nº 22: “levava as minina lá p’us Pato” (= para Patos). Isto é, mesmo o -s
de Patos, que deveria estar lexicalizado, é sentido como se fosse marca de
plural, não escapa à regra. De fato, a designação para “mais de um anátida” é
“os pato”, nunca “patos” ou “os patos”. Não ocorre -s na linguagem local
para indicar pluralidade dos nomes. Esta só ocorre no determinante. Daí o
surgimento de um determinante na designação da cidade em cujo município está
Capelinha do Chumbo, ficando “Os Pato” em vez de “Patos”.
Aliás, diga-se
de passagem que o artigo é de uso obrigatório, tanto para os nomes comuns
quanto para os próprios (cf. “Aqui no Ariado, você cunhece alguns!”).
[Como se vê, há redundância de marca de gênero, como “u mininu”,
“a minina”. Essa redundância de marca de gênero se dá também
entre substantivo e adjetivo, como em “vaca sortera” e “ferro
véio”].
O porquê desta
redundância de marcas de gênero dependeria de pesquisas mais específicas e
aprofundadas, o que fugiria dos propósitos que me tracei: fazer uma descrição
sumária da linguagem para associá-la com a cultura. Talvez isso possa ser feito
em trabalhos posteriores. Agora, sem pesquisa mais demorada, aventuraria a
hipótese de que a presença da marca de gênero no substantivo [e em seus
adjuntos] se explicaria pelo fato de o gênero vir em primeiro lugar, portanto
seria mais “essencial” em relação ao radical, enquanto que o número seria mais
“acessório”. Além disso, o número pode ser expresso por outro tipo de expressão
lexical (os numerais), enquanto que o gênero não se expressa facilmente por
outros meios. “Macho” e “fêmea” só se aplicam a seres animados, mas de
preferência aos não humanos.
Se os nomes não sofressem também uma
marca (de “gênero”, no caso) ficariam “em aberto”, pois sabemos que em
Português de um modo geral as palavras devem ter um morfema final (desinência).
Podemos também levantar uma
hipótese de caráter sociológico, isto é, a distinção bem delimitada entre a
função do homem e a função da mulher na sociedade local. Inclusive no plano dos
animais irracionais a diferença de sexo é importantíssima: o macho tem uma
função (em geral auxiliar no trabalho, como por exemplo para transportar cargas
ou o próprio homem), enquanto que a fêmea tem outra função (a reprodução e a
produção de leite, por exemplo). A este propósito, ver também o que se diz em
2.1.1. Com isso não quero dizer que o gênero gramatical seja inteiramente
determinado pelo sexo (natureza), mas sim que pode haver alguma influência,
alguma tendência.
De qualquer maneira, tanto um como outro
revelam também um certo pragmatismo linguístico. De fato, ao evitar redundância
de marcas de número, estão os falantes fazendo economia de significantes,
expendendo um mínimo de esforço para um máximo de rendimento, consequentemente,
simplificando o sistema. No caso do gênero, não há economia de significantes
porque é absolutamente impossível sua ausência, é inviável devido à organização
semântica da língua (ausência de expressões lexicais que indiquem “masculino” e
“feminino” – não “macho” e “fêmea”, note-se!).
Mas, alguém poderia objetar, a questão
da linguagem em situação tender à economia, à simplicidade, é um fato universal
e não só da linguagem de Capelinha do Chumbo! Sim, é verdade. No entanto, creio
que o contrário é que seria de espantar: se a linguagem dessa comunidade fosse
inteiramente sui generis. Ela obedece a padrões universais. Sendo assim,
então não seria necessário estudá-la, poder-se-ia objetar! É necessário
[estudá-la] porque ela usa elementos universais da linguagem humana, mas
combinados de maneira diferente. Aí está o peculiar do Falar Capelinhense que
constitui o objeto do presente estudo e de qualquer outro tipo de linguagem.
Esta noção de combinação de traços, ou de “feixes de traços”, nasceu com a Fonologia
(cf. Trubetzkoi 1970; Jakobson 1967) e foi aproveitada por Claude Lévi-Strauss
em sua análise da estrutura dos mitos (Lévi-Strauss 1970). Vê-se, portanto, que
o fato de a linguagem capelinhense conter princípios universais justifica um
estudo aprofundado a fim de se conhecer como ela os estrutura. Este estudo da
estrutura linguística fica ainda por ser feito em profundidade.
1. 2. Morfologia
No plano da Morfologia o Falar Capelinhense oferece
peculiaridades mais marcantes do que as comentadas na Sintaxe. Como já foi
dito, entender-se-á aqui por Morfologia o estudo da combinação de elementos da
palavra entre si, o que na prática significa a relação entre morfema radical e
morfema afixal. Tradicionalmente ela inclui também a classificação das palavras:
dizer, por exemplo, se são substantivos, verbos, adjetivos etc. À primeira
vista parece que esta concepção não é mais aceitável, mas como o presente
trabalho não se propôs uma teorização sobre as “partes do discurso”, também
esta classificação entrará no estudo da Morfologia. Partirei, portanto, da
repartição tradicional das “partes do discurso” entre substantivos, adjetivos,
verbos, pronomes, advérbios. Nem todos serão tratados aqui. Só serão trazidos à
baila aqueles que oferecerem algo de peculiar, que ilustrem melhor a tese
proposta.
1.2.1. Flexão nominal
Vejamos primeiramente a flexão
nominal, isto é, a combinação entre morfema radical e morfema afixal dos
substantivos e adjetivos, nos quais ela em geral obedece a um mesmo princípio.
Comecemos com a flexão em número.
Como já foi dito, ou melhor, sugerido,
ao tratarmos da concordância, a flexão numeral é muito simples, quase não
existe. Examinemos alguns exemplos:
1. “as minina”
2. “eu tâ achano assim qui esses caminho”
3. “os Pato”
4. “agora el pod’ dexá aquez minino fazê a
prova assim”
5. “vam’ fazê un-as prisão aí”
6. “era mez’ nossos colega de iscola”
7. “um home qui cê via ele só naques’ trajo
casero”
8. “já num quiria andá naquel’ trajo casero”
9. “a lembrança maió qu’eu tenho”
10. “a mesa tem a cheda, as chaveia”
Vê-se facilmente que o substantivo não
se flexiona em número. Como já vimos ao falarmos da concordância, isto se deve
a uma tendência a evitar redundância de marcas. Só se sabe se um substantivo
“se refere a um ou a mais de um ser” (na terminologia tradicional) se o
considerarmos no contexto da frase. Aí veremos que ele vem sempre acompanhado
de um determinante cuja presença indicará também se o substantivo está no
singular ou no plural. Mesmo com nomes próprios o artigo se torna obrigatório,
pois só ele indica a pluralidade (cf. nº 3: “os Pato” por “Patos”).
O adjetivo também normalmente não recebe
marcas de número. Aliás o Falar Capelinhense não é muito adjetivoso: sendo
altamente pragamático, evita excrescências de marcas. Quando ocorre um adjetivo
é quase sempre como “predicativo”, isto é, ligado ao substantivo por um “verbo
de ligação”. Dos dez enunciados transcritos acima, só dois apresentam um
adjetivo em função adstancial, de adjunto adnominal: “trajo casero” e “a
lembrança maió”. Estão sem marca de número.
Os determinantes, no entanto,
flexionam-se sempre em número. Os mesmos exemplos transcritos para os
substantivos valem para o caso dos determinantes. Observando os números 1, 4 e
10, por um lado, e 3 e “uai”, o pião tá correno o risco, né?”, por outro,
verificamos que o artigo tem as mesmas marcas que apresenta o Português
Literário, o que é válido tanto para o artigo definido, como para o indefinido.
O quadro dos artigos é o seguinte:
definido indefinido
masc. fem. masc. fem
sing. o a um un-a
plur. os as uns un-as
O mesmo ocorre no caso dos outros
determinantes, como os que aparecem em 2, 4, 6, 7 e 8. Com esses exemplos, mais
outros que podemos tirar de outros contextos não incluídos aqui, podemos
estabelecer o sistema dos determinantes: demonstrativos e possessivos:
demonstrativos
masc. fem.
sing. esse essa
plur. esses essas
sing. aquele/aquel aquela
plur. aqueles/aquês aquelas/aqueas
possessivos
masc. fem.
sing. meu minha (PS1)
seu sua (PS2)
dele dela (PS3)
plur. nosso nossa (PP1)
seus suas (PP2)
de(l)es de(l)as (PP3)
Tanto demonstrativos como possessivos
vêm com a marca de número, quer na função de adstantes, quer na função de
substantes, isto é, como substitutos.
Quanto à marca
de gênero, as coisas se processam diferentemente. De fato, tanto o determinado
quanto o determinante a recebem. As razões de sua existência, diante da
ausência da marca de plural foi discutida no capítulo da concordância.
Apresentemos alguns paradigmas de flexão de gênero no substantivo só a título
de ilustração, uma vez que para os determinantes já foram mostrados ao falarmos
do número.
Nos diversos espécimes citados desde o
início deste livro, conclui-se que a flexão de gênero do substantivo é:
masculino feminino
minino minina
cunhado
cunhada
tio tia
Como se vê, é tudo muito simples,
reduzindo-se quase que ao estritamente necessário, confirmando uma vez mais a
tese da “linguagem em situação” de que nos falou Malinovski.
Só a título de completar a
seção da gramática que trata dos nomes e dos substitutos, vejamos o quadro
pronominal do Falar Capelinhense (pronomes “de tratamento”, “retos” e
“oblíquos”, átonos e tônicos):
oblíquos
retos
sem preposição
com preposição
eu me mim
(PS1)
ocê te, ocê ocê
(PS2)
ele (ele) ele
(PS3)
nóis (nóis) nóis
(PP1)
oceis (oceis) oceis,
ceis (PP2)
e(l)es e(l)es eles,
es (PP3)
A PS3 às vezes apresenta o alomorfe “el”
(“l” lateral) nas três funções; a PP3 quase sempre é “es”, mas pode apresentar
o alomorfe “eles” também, sempre nas três funções. As formas entre parênteses
são sempre tônicas, mas ocorrem como oblíquas sem preposição após o verbo.
Observar o destaque em que
vem sempre a PP1, isto é, o locutor no momento da fala: ela se distingue de
todas as outras. Isto está estritamente relacionado com o sistema de conjugação
verbal, que será o próximo assunto.
Para terminar, é necessário acrescentar
que há também a flexão de grau, cujo status como flexão é frequentemente
contestado. Deixando de lado querelas teóricas, em FC são muito comuns os
diminutivos [e aumentativos]. Nas falas transcritas neste livro, temos, entre
outros os seguintes:
Diminutivos Aumentativos
Tuninho ‘Toninho’ < Tonho <
Antônio Zé Licão ‘Lica?’
provinha ‘provinha’ < prova Chapadão
‘Chapadão’ < chapada
mininadinha ‘meninadinha’ < meninada <
menino Roxão ‘Roxão’ < (boi) roxo
bizerrinho ‘bezerrinho’ < bezerro puerão ‘poeirão’
< poeira
1.2.2. Flexão verbal
No que toca ao verbo a simplicidade de
formas é mais marcante ainda, em comparação com o Português Literário. Alguns
exemplos já foram aflorados quando se falou da concordância verbal. Observando
todos os exemplos de enunciados citados até aqui, mais os que constam das
transcrições que tenho em mãos, constata-se facilmente que para verbos como
“contá”, “vendê”, “partí” e “pô” aquilo que as gramáticas chamam de “presente
do indicativo” se resumiria ao seguinte:
PS1 eu conto/vendo/parto/ponho
PS2 ocê conta/vende/parte/põe
PS3 ele conta/vende/parte/põe
PP1 nóis conta/vende/parte/põe; (contamo)
(vendemo) (partimo) (pomo)
PP2 oceis conta/vende/parte/põe
PP3 eles conta/vente/parte/põe
Em outros termos, excetuando a PP1, para
todas as demais pessoas o verbo apresenta uma só forma. A distinção só se faz
pelo pronome.
O “infinitivo” nunca tem o
“r” final, como no Português Literário. O que distingue “conta” (substantivo)
de “contá” (infinitivo) é o acento. Vejamos as outras formas verbais mais
comuns.
1. Infinitivo: contá, vendê,
parti, pô
2. Pretérito perfeito [uma forma para a primeira pessoa e outra
para a segunda]:
PS1 contei, vendí, parti, puis
PS2 contô, vendeu, partiu, pois
PS3 contô, vendeu, partiu, pois
PP1 contô, vendeu, partiu, pois // (contamo)
(vendemo) (partimo) (pusemo)
PP2 contô, vendeu, partiu, pois
PP3 contô, vendeu, partiu, pois // (contaro)
(vendero) (partiro) (pusero)
3. Pretérito imperfeito [uma única forma]:
PS1contava vendia partia punha
PS2 “
“ “ “
PS3 “
“ “ “
PP1 “
“ “ “
PP2 “
“ “ “
PP3 “
“ “ “
4. Futuro:
Só se expressa por formas compostas,
portanto, não se trata de uma forma como as até aqui comentadas. A este
respeito, pode-se consultar Couto (1974). A idéia de futuridade pode ser
expressa de várias maneiras:
(a) Pode ser pela mesma forma usada para
o presente: “Ceis sai lá im casa uma hora, tá?”
(b) Pela mesma forma seguida
de um advérbio de tempo: “Amanhã nóis sai lá”,
o que é mais comum do que a
fórmula anterior.
(c) Mas, talvez a forma mais empregada seja
“não, iss’ el’ vai contá”
Isto é, a maneira mais comum de indicar
a futuridade consta do verbo “í” (“vô”/”vai”) mais o infinitivo do verbo que
expressa o fato a comunicar.
Todas as formas até aqui comentadas são
do “indicativo”. Vejamos agora as do “subjuntivo”” [todas apresentam uma única
forma para pessoa e número].
5. Imperfeito:
(se) eu contasse, vendesse, partisse,
pusesse
(se) ocê
“ “ “
“
(se) ele
“ “ “
“
(se) nóis “
“ “ “
(se) oceis
“ “ “
“
(se) eles
“ “ “
“
6. Futuro:
(quando) eu contá, vendê, parti, pusé
(quando) ocê
“ “ “
“
(quando) ele “
“ “ “
(quando) nóis
“ “ “ “
(quando) oceis “ “
“ “
(quando) ele
“ “ “
“
7. Imperativo:
Conta, vende, parte, põe
Há outras formas, algumas mais ou menos
lexicalizada, como é o caso de “havéra de”, no sentido de “deveria”, “poderia
ser”, bem como de “dêva sê”, no sentido de “pode ser”, entre outras. Como se viu, algumas formas
apresentam variantes. Em geral a primeira pessoa do plural e a terceira do
plural. Assim, no presente do indicativo, tem-se:
“nóis conta”/”contamo”, “nóis vende”/”vendemo”
“nóis parte”/”partimo”, “nóis põe”/ “pomo”
Como já foi dito ao se falar da
concordância, esta alomorfia se explica pela economia da linguagem: evita-se
usar duas ou mais marcas de plural numa só expressão. Ou se usa “nóis conta” ou
“contamo”. No entanto, a primeira forma é a mais corrente, a que talvez no
futuro seria a única, não fosse o influxo externo exercido pelas comunidades
mais evoluídas sobre a comunidade capelinhense.
Tanto é verdade que se
prefere a forma com o pronome, que em alguns casos não apresenta alomorfia. É o
caso, por exemplo, da PP3 do verbo “pô”: “es põe”. Não ocorre *”põem”. O mesmo
no caso de “nóis contava”, em que não há o alomorfe *”contávamo”. Ou, então,
para “nóis contasse”: Não existe *”contássemo”.
Tudo isso se explica dentro da
simplicidade do sistema linguístico capelinhense. *”põem” é muito próximo de
“põe” foneticamente: os dois se confundiriam. *”contávamo” e *”contássemo”
exigiriam a introdução de proparoxítonos no sistema, o que iria de encontro aos
seus padrões prosódicos (cf. 4.2). Se mesmo nos casos em que não ocorrem estas
restrições prefere-se a forma analítica (com pronome), quanto mais aqui. Se
olharmos os diálogos transcritos, veremos que a preferência é para as formas
com o pronome. Inclusive meu acompanhante (auxiliar), um rapaz de nível de
quarta série ginasial, dizia “nóis vai”. Creio mesmo que [os capelinhenses] só
usam formas como “contamo”, “vamo”, “fomo”, etc., quando assumem uma atitude
calculada, principalmente devido à presença de forasteiros. O único caso em que
usam sempre uma forma como “vamo” é quando vão chamar, incitar alguém para
alguma coisa: “Vamo!”. Esta é a verdadeira forma “incitativa” da linguagem
local. Quando se quer “incitar”, “convidar”, “estimular” alguém para alguma
coisa sempre se usa o “vamo!”. Se o “convite” é para outra coisa que não “í”
(ir), usa-se o “vamo!” seguido do verbo que expressa o que se deseja: “Vamo
trabaiá!”, “vamo vê!” (cf. “let’s” em Inglês!).
Isto é o que se poderia dizer em termos
de gramática tradicional. No entanto, o próprio bom senso nos diz que esta não
é a abordagem mais sensata, mais condizente com a verdade dos fatos. Para fazer
uma apresentação do sistema verbal em questão, teríamos que estabelecer
primeiro alguns pressupostos teóricos.
Primeiramente temos que distinguir entre
formas sintéticas (ou expressões lexicais) e formas analíticas (ou expressões
sintáticas). Como expressões lexicais só existem as seguintes formas:
1. “contá”
5. “contei”/”contô”
2. “conto”/”conta”
6. “contano”
3. “contava”
7. “contado”
4. “contasse”
8. “vamo!”
Entre as formas analíticas (sintáticas),
temos:
9. “tô contano”
10. “vô contá”
11. “tá contado”
12. “vamo contá”.
Em segundo lugar, é necessário
esclarecer que o único tempo verbal bem marcado é o passado (“pretérito
perfeito”). Quando dizem “conto”, pode isso referir-se ao passado, ao presente
ou ao futuro, dependendo do contexto da situação em que foi proferido. Quando
dizem “contei”, no entanto, trata-se de um fato situado no passado, em relação
ao momento em que se fala, sem mais, independentemente do contexto. Isto também
tem explicação dentro da linha de pensamento deste trabalho. É que numa
comunidade coesa como a de que se trata, cujo modo de vida é de uma grande
simplicidade e o relacionamento indivíduo-indivíduo é bastante estreito, o
passado talvez seja a parte do tempo mais marcante, uma vez que é ele que
assegura o status quo, é o que se passou ou o deixou de se
passar, isto é, a tradição, entre eles e que regula seu relacionamento no
momento em que estão em diálogo. Se for verdade esta hipótese extralinguística,
teremos explicado o fato de o “tempo passado” do verbo ser o mais marcado, ou
melhor, ser o único marcado.
Resta ainda uma interrogação: por que só
no ”presente” e no “passado” (perfeito) há uma forma distinta para a PP1, em
oposição a todas as outras? Creio que se trata de uma questão de estatística.
Estes dois tempos são mais usados do que os outros e, como tal, exigem uma
distinção em relação a todos os outros. De qualquer maneira é uma questão que
depende de maiores pesquisas, o que não cabe aqui.
2. Léxico
Examinemos agora a parte da língua que mais
diretamente se relaciona com a cultura, o seu léxico. “O léxico da
língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes.
O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo
inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção
da comunidade; e, por isso, se houvesse à nossa disposição um tesouro assim
cabal da língua de uma dada tribo, poderíamos inferir, em grande parte, o
caráter do ambiente físico e as características culturais do povo considerado”
(Sapir 1969: 45). De fato, o léxico de uma língua representa a maneira pela
qual seus falantes analisam a realidade, o ambiente (físico e social). Por isso
é a parte mais flutuante da língua, a que mais sofre acréscimo e supressão de
elementos, sob a forma de arcaísmos e neologismos, devido ao interesse ou
desinteresse pelo elemento do ambiente que eles designam.
Será entendido por Lexicologia
“o estudo do vocabulário de uma língua” (Borba 1971), a “disciplina que estudia
el léxico de una lengua en su aspecto sincrónico” (Carreter 1971), bem próximo
do conceito de Matoré, para o qual ela é “uma disciplina sociológica que
utiliza o material linguístico - as palavras” (apud Borba 1971).
De fato, como não se cansam
de salientar tanto linguistas como sociólogos, a língua (entenda-se aqui, o
léxico de uma língua) não é uma nomenclatura das coisas existentes na
natureza, mas representa a maneira pela qual os falantes percebem estas coisas
da natureza, ou melhor, a maneira pela qual eles “recortam” a realidade. De
fato, cada palavra de uma língua é o reflexo de um recorte na realidade feito
por seus falantes (Martinet 1964: 8-9). Assim sendo, nada mais natural que o
fato de ser o léxico o aspecto da língua que mais espelha a maneira ela qual um
povo encara o mundo, a maneira pela qual reagem diante das pressões do
ambiente, tanto físico quanto social. Por exemplo, qualquer leigo em matéria de
linguística é capaz de saber, ou melhor, de entender porque os habitantes do litoral têm mais termos referentes ao mar
e às atividades a ele ligadas do que um habitante do interior. Ou porque para
uma criança da cidade, em geral só existe “boi” e/ou “vaca”, enquanto que para
uma criança que mora numa fazenda, existem, no mínimo:
a) “bezerrinho”, “bezerro”, “novilho”, “boi”
b) “bezerrinha”, “bezerra”, “novilha”, “vaca
Às vezes vão mais longe ainda, fazendo
distinção entre “vaca sortera” e “vaca parida”, entre “boi de carro” (ou “boi
carrero”) e “boi reprodutor” (ou “marruais”). Designam-se até aspectos mais
especializados, como por exemplo, cor, falta de um ou de ambos os chifres,
falta de rabo etc., etc. Isso tudo se deve ao fato de que as pessoas que lidam
diretamente com o gado têm necessidade de fazer estas distinções, pois têm que
se referir a este ou àquele animal específico a todo instante. Do que decorre
que todo componente do plantel tem um nome especial. Todos estes aspectos foram
mencionados por Sapir na obra supra e em vários outros escritos de sua autoria.
2.1. Onomástica
O primeiro item que levaremos em
consideração é a Onomástica. Segundo o já mencionado Carreter, ela é
“(la) rama de la lingüística destinada al estudio de los nombres propios”.
Acrescenta ele que a Onomástica “se subdivide en Toponimia o Toponomástica y
Antroponimia” (Carreter 1971). Aqui serão levados em conta, como subramos da
Onomástica, não só a Toponímia e a Antroponímia, mas também a Zoonímia.
Vários outros subtópicos serão
abordados, mas não têm uma designação especial, são campos específicos ou da
Toponímia, ou da Antroponímia, ou da Zoonímia.
2.1.1. Antroponímia
Antroponímia é [a] “rama de la
Onomástica que se ocupa de los nombres de personas” (Carreter 1971), não
havendo necessidade de maiores detalhes de conceituação.
Em Capelinha do Chumbo, as
pessoas não são chamadas, de um modo
geral, pelo nome “de registro”. Todos são chamados ou [por] apelidos
ou por meio de hipocorísticos ou ainda por adulteração (melhor seria dizer “adaptação”) fonética ou morfológica de seu nome de batismo
(ou “de registro”). A não ser que se inquira
explicitamente o nome de registro, ao se perguntar qual o nome de uma pessoa,
obteremos uma denominação do tipo das acima
referidas. Os casos em que as pessoas são chamadas pelo nome oficial (de registro) são excepcionais. Em minha
pesquisa, particularmente, registrei muito poucos e mesmo assim em geral são usados quando não há necessidade de maiores
caracterizações devido a homonímias. Nomes como “Maria” “Juão”, “Osmar”, “Juaquim” etc., são usados nestas circunstâncias. Mas, se houver
necessidade de se evitar homonímias “Maria” será “Maria do Mané Preto”, “Juão” será “Juão Fará” etc. De um modo geral, as
pessoas são designadas por um dos
seguintes processos.
a) Nomes próprios oficiais
“adulterados”, isto é, adaptados aos padrões linguísticos locais:
“Tõe-Me-Live, Zé Nosso, Juca Boa, Zé Misquinha, Zé Duro, Ninim Pul’-i-Fica, Zé Broca, Pedo da Máquina, Zé Caganera, Gerardo
Pilutinha, Tião Lobo, Juão Fará, Zé Prego, Gerardo Penerero,
Juaquim Foiero”
Destes, alguns apresentam
adaptação fonética (ou fonológica, cf. 4.1.4) em uma
parte (em geral o pré-nome), e a este se
acrescenta uma outra caracterização. Essa caracterização é quase sempre uma expressão descritiva de aspectos físicos, psicológicos ou sociais. Dentre os
de caracterização psicológica (ou de comportamento, ou
de personalidade) podemos salientar os seguintes:
“Zé Misquinha, Zé Duro, Juca Boa,
Tõe-Me-Live”
Quanto ao aspecto de caracterização
física pode-se aduzir estes:
“Gerardo Pilutinha, Zé Prego, Gerardo
Marimbomdo, Zé Pança”
A respeito do aspecto social, o que
chama a atenção é a designação pela profissão:
“Pedo da Máquina, Gerardo Penerero,
Juaquim Foiero”.
b)
Apelidos:
“Barra, Futrica, Rengo, Tatu,
Chiquéte, Bolô, Goró, Baio, Cachimba, Ferro-Véio, Ferruja, Firrim, Churim,
Chipe, Bissudo, Broa, Tampinha, Piula, Péia, Fengo, Matutinha, Béba, Pão, Djem
(o m é mesmo bilabial [djem]), Pistrunca (ou Pristunca), Martelo,
Canga, Daca, Gim, Galo, Chigura, Tuquinha (Toquinha), Tuca, Tonga, Santo,
Gambá, Morô, Dô-Dô, Bosta-Seca, Parafuso, Górda, Patarata, Bonzóia, Tiuca ([tchuka]),
Mas-Grande, Chata, Sinhô”.
Como no caso (a), aqui também as designações de alguns se referem a
caracterizações psicológicas ou comportamentais (“Futrica”), mas no geral os apelidos
se referem mais a caracterizações físicas, e são frequentemente criados por
processos metafóficos e/ou metonímicos (“Chata, Tampinha, Piula, etc.”).
c) Hipocorísticos:
“Fio, Né, Zé, Neném, Tião, Tõe, Quitito, Juca, Crade,
Barba, Nadim, Quinca, Có ou Cozinho”
Alguns destes talvez entrassem melhor em
outras categorias, como “Fio” (de “Filho”), mas como obedecem aos mesmos
processos dos hipocorísticos, classifico-os juntos.
d) Pertinência a alguém:
“Zé do Juca, Maria do Agripa,
Darva do Zé, Delci do Béba, Neném do Chiquéte, Rosa do Juca Boa, Maria
do Sinéso, Maria do Pedo Zangão, Neném da Marieta, Vicente da
Bina, Fio Mélia (= da Amélia), Nega do Géro, Nega do Chiquéte, Maria do Fidirico, Maria
do Mané Preto, Zé do Olinto, Zé da Olinta, Arlindo do Juão Lazo, Nego da Chiquinha, Zé Artino (< “Zé do Artino”, isto é, “Altino”), Neném do Nico”.
Tanto no caso de criação de uma parte
descritiva para acompanhar o pré-nome (e às vezes até este está adaptado,
segundo os processos mencionados em a, b, c, d,
quanto no de qualquer outro tipo de adaptação), o que se nota é uma profunda
imbricação linguagem-cultura. A adaptação se processa também no pré-nome,
adaptação esta que coincide de certa forma com o processo apresentado em c.
Quase todo mundo tem apelido em
Capelinha do Chumbo. Sua não existência é exceção, não a regra. O surgimento do
significante (Saussure 1971: 97-103), apesar de um tanto aleatório, obedece a
alguns princípios gerais da estrutura sociolinguística local. Em geral (ou
sempre) os padrões silábicos são fatores de suma importância (cf. 4.1.3), com
exceção de “Djem”. Também a prosódia (cf. 4.2).
Como o apelido é um caso especial,
talvez valesse a pena umas poucas palavras sobre sua gênese. Em alguns casos há
uma motivação (ainda no sentido saussureano) em sua escolha, como no caso de
“Tuquinha” (Toquinha), que é muito pequena. “Piula” se deve ao mesmo fato, pois
a menina assim chamada é muito miúda, “do tamãe dun-a piula (pílula)”. Mas, em
geral o nome pode até ser uma combinação de sílabas formando uma “palavra não
existente na língua (tomando-se “palavra” no sentido popular, não no sentido
técnico). Nesta linha podemos citar, por exemplo, “Rengo”, “Goró” etc., que não
foram motivados por nada, seu nascimento só poderia ser explicado se
remontássemos ao momento em que alguém o pronunciou pela primeira vez.
“Patarata” é omomatopaico: segundo informaram, ele fala sempre assim, através
de sílabas como “pa-pa”, “ta-ta”, “ra-ra” etc.
Mais importante,
porém, do que explicações genéticas dos apelidos é a sua própria existência.
Todos são nomes populares, de fácil emissão, os fonemas e os padrões silábicos
são dos mais legítimos no Português, pertencem ao verdadeiro núcleo das
tendências da Língua Portuguesa.
Os hipocorísticos, que são um “processo
apelativo usado na linguagem caseira para traduzir carinho” (Borba 1971), por
si sós já explicitam uma “familiaridade”, refletida na linguagem, uma vez que
só se chama por nomes assim a pessoas da própria família. Como em Capelinha do
Chumbo como um todo usam-se estes nomes (há pessoas que só são conhecidas na
localidade por eles, como “Nadim”, “Quinca”) mesmo para pessoas não pertencentes
à própria família consanguínea, temos mais uma vez reforçada a afirmação de que
toda a população tem um forte sentimento de unidade, de pertinência à mesma
comunidade, o sentimento da existência de interesses em comum fortemente
calcado em cada um.
Os apelativos classficados em d
são também reveladores, do ponto de vista sociolinguístico.
Vários nomes indicam a pertinência de
alguém a outrem, pois “Zé do Juca” é o José filho do senhor “Juca”
(hipocorístico de José, por sua vez). Em geral indicam filiação. Esta às vezes
remonta até ao pai do pai. Perguntei a um menino de quem era filho e ele me
respondeu: “Da Maria do Pedo Bia”. Isto é, a “Maria” (sua mãe) pertence à
família que tem por chefe o senhor “Pedo Bia”; este, por sua vez, tem este nome
por pertencer à família que tem por chefe o senhor “Bia” (Bias). A razão de o
menino ter mencionado o nome da mãe e não o do pai, que é o normal, é o fato de
este já ter morrido.
Mas, esta pertinência a um núcleo familiar indicada no
nome real dos capelinhenses permite outras inferências. Dos 21 nomes aqui citados, apenas 3
indicam a pertinência de um homem a uma
mulher (“Vicente da Bina”, “Fio Mélia”, “Zé da Olinta”). 18, portanto 99,9%,
revelam subordinação da mulher ao homem e 14,2%
revelam subordinação do homem à mulher. Isto é revelador do tipo de
sociedade do interior do Brasil, como todos sabemos.
Se observarmos bem,
verificaremos que os nomes das pessoas só indicam pertinência de homem a mulher no caso da relação filho-mãe, pois do contrário só o inverso se verifica. De
todos que aqui citei, alguns indicam a pertinência da mulher ao marido (“Darva do Agripa”, “Darva do Zé”, “Maria do Mané Preto” etc.), outros indicam sua
pertinência ao pai (“Neném do Chiquéte”, por exemplo). O último caso ocorre quando a
mulher é solteira.
Que conclusões podemos tirar observando
esses fatos?
A que mais chamou minha atenção e a que mais diretamente
se refere ao tema deste livro é a de que, em geral, todo mundo tem dois nomes: um oficial,
outro real.
O que vem a ser isto?
Simplesmente que a tradição notarial tem já um elenco de nomes “oficiais”, isto é, consagrados pela tradição linguística luso-brasileira. Quando
nasce uma criança e os pais vão registrá-la no cartório, dizem que querem o nome
“Antõe”, mas o encarregado dos
registros consigna “Antônio”. Às vezes eles dizem ao
encarregado do cartório o nome “certo”, sabem qual é a forma “correta”, mas continuam chamando a
criança de “Antõe” ou de “Tõe”. Quando ela cresce e alguém pergunta seu nome para anotar
em um documento ela poderá dizer “Antônio”, mas se não fôr para anotar (“assentá”), dirá “Tõe” ou quando muito “Antõe”. Em outros termos, há uma adaptação às normas linguísticas dos nomes
pertencentes ao diassistema ou ao Português Literário. Estas são perfeitamente pertinentes no meio sociocultural em
questão. Não se trata de uma deformação do Português Literário, como pretendem alguns
gramáticos e filólogos puristas.
A linguagem do caipira funciona em seu
meio tão bem como o Alemão na sociedade alemã. Qualquer linguagem deve ser
julgada, portanto, dentro do ambiente em que é falada. Não podemos julgar o
Português Caipira com os mesmos critérios com que julgamos o Português
Literário, assim como não podemos medir água com unidades de extensão, ou
cordas com litros, decilitros. É por isso que não concordo com falar em
“metaplasmos”, o que implicaria que a linguagem de que trato seria uma
“modificação” (para pior, segundo os puristas) do Português Literário. Veja-se
o que diz a respeito o linguista belga Maurice Leroy, de outra perspectiva
embora.
2.1.2. Toponímia
A Toponímia, segundo Carreter, é
a “rama de la Onomástica destinada al estudio de los nombres de lugar” (Carreter
1971); segundo Mattoso Câmara são topônimos os “nomes próprios (.....) de
lugares ou acidentes geográficos” (Câmara s/d). Capelinha do Chumbo está
situada numa região que talvez não favoreça o surgimento de [muitos] topônimos.
Está à beira de um rio (o Areado) e sua comunicação com outras comunidades é
mais com Patos de Minas. Assim sendo, tomarei um ponto determinado próximo à
estrada que vai para aquela cidade, uma fazenda distante da “sede” do distrito
uns seis quilômetros, mais ou menos. Nesta fazenda mora uma família típica do
lugar, cujos hábitos (inclusive a linguagem) não diferem praticamente em nada
dos dos habitantes do “comércio” (um dos nomes que dão à zona “urbana” por
oposição à “rural”, ou roça). E, já que tomei esta família como referência,
abordarei não só os nomes dos “pontos” que identificam em seu caminho a
Capelinha do Chumbo, mas também todos os acidentes que a circundam e que seus
membros sentiram necessidade de nomear.
Como já disse Sapir (Sapir 1969), um
elemento do ambiente só receberá um nome se representar, de um modo ou de
outro, algum interesse para o homem. O que pretendo mostrar aqui é, portanto,
se os membros daquela família denominaram realmente os acidentes mais evidentes
ou se [apenas] aqueles que servem de ponto de referência para alguma coisa.
Circundando a fazenda
identificam-se:
“Serra do Parmital” e “corgo da
Capivarinha” (norte);
“Capelinha do Chumbo” e “corgo das Batata” (sul);
“Horizonte Alegre” (“Tavares”) (leste)
“Serra da Roxa” (oeste).
Agora vejamos o que a referida
família identifica em seu
caminho para Capelinha do Chumbo.
Primeiramente, ainda em seu
domínio, passam pela “Lagoa dos Miguel”; em seguida passam pelo “Jerômo Abacaxi” (=Jerônimo Abacaxi), assim
conhecido por vender esta fruta; logo a seguir passam pelo “Mato Seco”, pela “Barriguda” (uma paineira velha), pelo “Morro de Pedra”, pela “Cruizinha” (=cruzinha), pela “Catiara” (já na entrada, um bairro de
Capelinha do Chumbo), pelo “Cimintéro” (=cemitério) e, finalmente, entram
em Capelinha do Chumbo.
Por que será que uma árvore velha, talvez secular,
sem nada de especial, é ponto de referência? Ao seu lado há uma série de coqueiros, algumas
mangueiras..... Por que o “ponto” não ficou sendo chamado “Coqueiros” ou “Mangueiras”? Talvez a explicação esteja numa velha lenda
que diz que debaixo da paineira existe um tesouro enterrado, mas que ninguém consegue arrancar de lá, pois aparecem “uns trem” esquisitos, o capeta, e não o deixam. A “Cruizinha” parece mais difícil ainda de explicar. No
entanto, ela está num trato de estrada muito
longo (entre o “Morro de Pedra” e a “Catiara”) e, como não há nenhum outro acidente que
sirva de referência (o trecho é uma chapada), então ela passou a ser
significativa para os passantes. Quanto a “Catiara”, sua fama se deve à sua antiga “má fama”: era a zona das mulheres de vida fácil, no tempo em que o
garimpo fazia grandes riquezas na região. Assim sendo, o nome perdura até hoje. O “Mato Seco” situa-se numa curva de
caminho a uns duzentos metros da “Barriguda”. Mas, seu tamanho (não muito grande em termos relativos) chama a
atenção. Além do mais contam-se muitas
histórias de “assombrações” que assustam os transeuntes
noturnos. Quanto ao “Morro Vermelho” e o “Morro de Pedra”, as próprias designações descritivas já dizem por que receberam
nomes. O “Cimintéro” dispensa comentários, além de estar entre “Catiara” e a “praça” de Capelinha do Chumbo
propriamente dita.
Todos os acidentes comentados até aqui
são identificados por todos os habitantes das redondezas e não só pela família
em questão. Com exceção dos pontos do caminho da fazenda até Capelinha do
Chumbo, quese tudo que comentei até aqui pertence ao que poderia chamar Macro-Toponímia.
De fato, a maioria dos acidentes são de conhecimento geral, quase oficial, servindo
de baliza até mesmo para as autoridades do governo demarcarem distritos ou
mesmo limites de uma fazenda (cf. os textos legais que aparecem no início do
livro).
No entanto, a família em questão
distingue aspectos da natureza sem importância para os de fora, mas que para
ela são de suma importância. Assim, além dos já referidos, e que abrangem
acidentes como “Serra da Roxa”, “Serra do Parmital” e “Capivarinha do Chumbo”,
os membros da família (pai, mãe, filhos, avós e “agregados”) identificam e
nomeiam aspectos que à primeira vista não têm nenhuma importância. O “Ispigão”
é um espigão situado em um ponto extremo do terreno de sua propriedade, do lado
sudeste. Sua importância está não só em ser ponto extremo, mas também no fato
de que quando uma rês (boi ou vaca) ou “animal” (cavalo ou égua) vai para lá é
difícil encontrá-lo, pois é o último lugar a que se vai. A “Lagoa”, já
mencionada, fica em terras de propriedade da família e tem nome por ser também
um ponto extremo, e que às vezes se alaga na época da chuva, do lado nordeste.
É o lugar mais retirado da “casa”, ou sede da fazenda. Nos fundos da casa passa
um pequeno córrego que deságua em um maior que vem “lá do Nadim”, isto é, da
fazendo do Nadim (Leonardo). Nenhum dos córregos tem nome. No entanto, quando
querem se referir a um deles, dizem “o Corguinho Nosso” ou “o Nosso Corguinho”,
por oposição ao “Corgo do Nadim”. O pedaço da fazenda que lhe pertence, situado
dentro do ângulo formado pelo encontro dos dois, é também “Ispigão”. Quando se
quer fazer a distinção entre este e o outro já mencionado, diz-se “o Ispigão do
Nadim” para este e “Ispigão do Quinca” para aquele, pois estes são os nomes dos
proprietários das terras em cujo limite se situam. Identificam os membros da
família ainda o “Oi d’Água” (=Olho d’Água, [fonte]), a nascente de “Nosso Corguinho”.
Aparentemente ele não tem nenhuma importância, mesmo porque logo acima dele
está um bosque muito mais chamativo. No entanto, o “Oi d’Água” é lugar de as
crianças brincarem, daí este nome ser usado quase que exclusivamente por elas.
Além do “Corgo do Nadim” está um outro espigão, coberto de vegetação: é a
“Capuera”. Além de estar numa posição imponente, a capoeira situa-se no caminho
que vai para o “Josia” e para o “Nego”, dois parentes da família em questão.
Na face leste da casa, há umas árvores, que também chamam a atenção dos membros da família do “Zé Artino” (ou “Zé do Artino”): são dois ou três pés de “Binga”, árvores imponentes que cobrem
o sol nascente e têm esse nome por produzirem
uma semente cujo casco se assemelha a uma binga, isto é, isqueiro. Menos
significativa parece uma pequena árvore, ao lado das “Binga” (“As Binga”): a “Arvinha”. Tem bastante folhagem, está no galho de estrada que
parte para a casa e é também lugar para as crianças brincarem. Talvez sua
copa arredondada é que tenha chamado mais a
atenção. Estão situadas (a “Arvinha” e os “Pé de Binga”) a uns duzendos metros da
casa. A fazenda como um todo está dividida em “Casa” (com“Curral”, “Chiqueiro”, “Quintal” e “Manguera” = pequeno cercado em que se
colocam os porcos), “Pasto de Cima” e “Pastinho”. Além disso distinguem a “Istrada” que vem do “Parmital” e passa pela “Arvinha” e pelos “Pé de Binga” em direção a Capelinha, e a “Linha”, a estrada para automóveis que liga Capelinha do
Chumbo a Patos de Minas, passando a uma distância em que se avistam os carros transitarem (aliás, “carro” significa “carro-de-boi”, o carro urbano é “otomóve”).
Por oposição ao tipo anterior de
aspectos toponímicos, podemos chamar a este último de Micro-Toponímia,
isto é, a parte da Toponímia que se preocupa com aspectos de detalhes da
paisagem física de uma região pequena.
Mais uma vez é patente o pragmatismo
linguístico. Denominam-se aspectos da paisagem que para uma pessoa não
pertencente a sua cultura não têm nenhuma importância. Para os habitantes do
local, no entanto, apresentam uma importância vital, pois o homem está
intimamente ligado a eles, assimila-os a sua vida diária e se refere a eles a
todo instante em sua vida.
2.1.3. Zoonímia
Uma fazenda contígua à da família sobre
que falei acima, pertencente à “Tonha do Nadim” e administrada por José Severo
Alves, apelidado de “Zé Licão”, dedica-se à criação de gado leiteiro. Além
disso tem alguns outros animais para o uso pessoal. Vejamos os seus nomes.
Nesta fazenda existem:
1. Dois cavalos: “Lontra” e “Castainho”
2. Setenta vacas: a) ”paridas”: “Suberana, Caneta, Canoa,
Beja-Flor, Sinuca, Boa-Vista, Lembrança, Lavareda, Pinta-Sirva, Avenida, Londrina,
Revista, Prumissóra, Vélósa, Brasilera, Saudade,
Mansinha, Viana, Praianinha, Fiurinha, Lindóia, Pampulha, Figurona, Pretinha, Marelona,
Princesa, Noturna, Códórna, Rivirada, Camponesa,
Caipira, Ruxinha, Dóbrada, Prenda, Luxosa, Ispórtiva, Sete-Copa, Coroa,
Luxenta, Fiança, Primavera, Campera,
Curitiba, Brasília, Rósada, Dóbrada, Sardinha, Gurita”.
b) “sortera”: “Rainha, Cabrocha, Cinema,
Chinesa, Divisa, Barra-Mansa, Carambola, Galocha, Grã-Fina, Ispadinha, Gaúcha, Bórdada, Serenata, Mazona,
Pinta-Roxa, Catiara, Goiana, Manchada, Tétéia, Jóia, Uberaba”.
3. Dez bois: a) reprodutor”: “Presente” e “Cadarço”
b) “carrero”: “Barroso e Roxão”,
“Briante e Gigante”, “Trochado e Istrêlo”, “Dilicado e Namorado”.
4. Três cachorros: “Piano, Piloto e
Japi”.
Como se vê, esta é a parte da Zoonímia,
nome não muito usual, mas que sem maiores comentários serve para os propósitos
deste trabalho. Zoonímia é, aqui, a parte da Onomástica que trata dos nomes de
animais.
Poderiam parecer ociosas as listas de
nomes de animais. No entanto, quantas conclusões poderíamos tirar de uma olhada
ainda que superficial a elas? Quantas indagações elas sugerem ao estudioso!
Só para sugerir alguns exemplos: a) Por
que tantos animais com nomes de cidades brasileiras? (“Londrina, Lindóia,
Pampulha, Curitiba, Brasília, Mazona - Amazonas -, Catiara - [nome de uma]
localidade próxima a Patos de Minas e [de um] bairro de Capelinha do Chumbo -,
Uberaba”)? b) Por que nomes de coisas que não pertencem à cultura local
(“Rivista, Praianinha, Cinema, etc.”)? c) Por que alguns animais têm nomes que
designam seres abstratos e outros têm nomes que desigam seres concretos
(“Lembrança, Luxósa, etc., / Camponesa, Coroa, etc.”)? d) Por que alguns têm
nomes sugeridos por características físicas e comportamentais (“Fiurinnha,
Pretinha, Ruxinha, Manchada, Tróchado/ Mansinha, Luxenta, etc”) e outros não
(cf. os itens a, b, c)? Ou então: e) Por que os bois
“carrero” têm quase sempre nomes que sugerem dinamismo, força, como
aumentativos (“Gigante, Roxão”)?
Enfim, é um campo aberto a pesquisas
sociolinguísticas de valor inestimável. Não vou entrar em pormenores,
respondendo aquelas perguntas, pois este livro é um tanto abrangente, não
podendo entrar em detalhes mais profundados. De qualquer maneira, nota-se que,
tirante as perguntas que sugeri, os zoônimos seguem a tendência geral dos
hábitos linguísticos da comunidade. Veja-se, a título de exemplo, a estrutura
fonológica, silábica dos nomes (cf. 4.1.4).
Além do mais, seguem as mesmas
tendências mencionadas para o
caso dos apelidos. Só que aqui a influência externa é mais marcante, talvez
devido ao fato de a presença dos animais ser um tanto mais efêmera. Ou então, pelo fato de o ser humano ser superior aos
animais e, portanto, os termos referentes a ele são mais constantes, mais impregnados da
cultura local.
Assim como se pôde ver, quase todos os nomes
são designações transparentes (cf.
Ullmann, s/d), isto é, são ou nomes descritivos ou
designações adaptadas de outro ser. E
na grande maioria são nomes que estão perfeitamente integrados
na cultura local, tanto em sua conformação geral (esquemas silábicos, acentuação tônica - cf., 4.1.4 e 4.2) como do ponto de vista
cultural (são palavras já existentes para designar
outras coisas). No entanto, há nomes sugeridos por realidades inexistentes na cultura local: o
fato se explica pela pressão das comunidades externas, quer mediata quer imediatamente. Ou
então, poderia ser um desejo de
extravasar, uma curiosidade pelo desconhecido. A hipótese mais plausível é a primeira, pois como já foi dito, existe o influxo
de grandes centros através de viagens de pessoas do
lugar (o que é muito raro) e dos meios de
comunicação (no caso, o rádio).
3. Fraseologia
Para Mattoso Câmara a Fraseologia
é o “estudo das FRASES FEITAS, isto é, fossilizadas em sua forma e seu sentido
e usadas no discurso à maneira de uma locução” (Câmara s/d). É, portanto,
distinta da Lexicologia como foi esta aqui entendida, uma vez que trata de
palavras combinadas, ainda que um ou vários de seus elementos estejam
substituídos pelo contexto da situação em que o diálogo se dá. Mas é, por outro
lado, distinta da Sintaxe, pois só trata das expressões cristalizadas.
Entra aqui também o que talvez coubesse
melhor na Lexicologia, isto é, palavras típicas da região. Serão consideradas
nesta seção as expressões sintáticas e as expressões lexicais.
Passando os olhos pelas “expressões fossilizadas” mais frequentes em
Capelinha do Chumbo, podemos apresentar uma classificação razoavelmente satisfatória para os propósitos deste trabalho.
Distinguirei “expressões sintáticas” e “expressões lexicais”, como já fiz em outro local (Couto
1974). Como não poderia deixar de ser, as
expressões lexicais apresentadas são em maior número do que as sintáticas uma vez que, como já vimos, são a parte da língua que mais diretamente se
refere ao ambiente, à cultura. E aqui temos outra
razão para a separação da Fraseologia da
Lexicologia: por aquela entendo além do que já disse, a parte das expressões aparentemente mais típicas do lugar,
principalmente em confronto com as que ocorrem em um grande centro como São Paulo.
Eis uma lista de expressões sintáticas.
1. “lá invém” ou “lenvém” = lá vem, vem lá...
2. “lá invai” ou “lenvai” = lá vai, vai la....
3. “por conta de” = por causa de
4. “isturdia” = outro dia, certo dia atrás
5. “dimais” = muito (“Aquela casa é bem feita dimais”)
6. “quando dé fé” ou “quan’ dé fé” = quando menos se esperar
7. “im antes de” = antes de
8. “à riviria” = muito (“tem gente à riviria”)
9. “ingulí a lobera” = voltar atrás em um negócio, [não manter a palavra]
10. “mundo véio” = muito (“tem um mundo véio de gado”)
11. “tra banda” = o lado de lá do rio (“ele tá lá de tra banda do rio”, “lá no tra banda do rio tem
muito gado”, “ele mora lá no tra banda”
12. “atolá a briosa” = sair-se mal, entrar pelo
cano
13. “batê a pedra” = prometir ir trabalhar
para alguém e não ir
14. “num tem base não” = não dá para se avaliar (“ele é munto temoso, num tem base,
não!”. Esta parece ser uma
expressão passageira [neológica].
15. “tá nos caso de” = ter intenção de
16. “dos mais” = muito (“ele tá dos mais riguilido” = assanhado)
17. “pegá luita” = luta corporal amigável, que consiste em jogar o
adversário no chão e dominá-lo
18. “na lóba” = por pura sorte, por um
triz (“ele ganhô na lóba”)
19. “passá a manta” = sair ganhando em uma “catira” (“eu te passei a manta”)
20. “um terno de” = muitos (“tinha um terno de home lá”)
21. “im des’ de” = desde
Não fiz um inventário exaustivo, o que
extrapolaria os objetivos visados aqui. Como já declarei antes, anotei só aquelas [expressões] que saltam à vista. Pois bem, podemos
fazer a seguinte classificação, segundo o “campo semântico” (cf. Ullmann, s/d; Guiraud,
1969) a que pertencem:
a) expressões relacionadas com o espaço:
“lá invém” ou “lenvém”
“lá invai” ou “lenvai”
“tra banda”
b) relacionadas com o tempo:
“isturdia”
“quan’ dé fé” ou “quando dé fé”
“im antes” ou “inhantes”
“im des’ de”
c) relacionadas com a quantidade:
“dimais”
“à riviria”
“mundo véio”
“dos mais”
“um terno de”
d) relacionamento indivíduo-indivíduo:
“ingulí a lobêra”
“batê a pedra”
“pegá luita”
“passá a manta”
e) relacionadas com causa:
“por conta de”
Ficou, portanto, um resíduo difícil de juntar em uma
classificação. São eles:
“atolá a briosa”
“num tem base”
“tá nos caso de”
“na lóba”
Todas elas, quer as classificadas, quer
as não classificadas revelam um profundo envolvimento dos falantes com o
ambiente físico e social em que se acham. De fato, das 21 transcritas: três são
usadas para situação no espaço; quatro para situação no tempo; quatro para
relacionamento indivíduo-indivíduo. Isto é, mais da metade. A própria
existência de expressões típicas já é reveladora desse envolvimento, isto é, os
falantes são de um espírito altamente telúrico, ligado à terra de tal modo que
a própria linguagem se distingue da linguagem de outras comunidades
brasileiras.
As expressões lexicais são em muito
maior número e, eo ipso, de muito mais difícil classificação. De
qualquer maneira, salta logo à vista a grande quantidade delas, usadas em
diversas circunstâncias.
1. “jabo” ou “jaibo” = corte, sulco,
ferida, fenda
2. “petêco” = desordem, bagunça, sujeira
3. “inguijilado” = definhado, murcho
4. “amojá” = estar com o úbere cheio, prestes a parir
5. “íngua” = coisa que incomoda (“vamo tirá essa íngua daí”: a propósito de um carro que estava estorvando)
6. “mutrêco” = coisa feia, desajeitada,
boneco de trapo, espantalho
7. “trelá” = combinar, dar-se bem (“Ez num trela não”)
8. “panhá” = comprar, adquirir (“eu tava
pensano im panha u)a”)
9. “oh!” (longo: “ôô”, [o:]) = como vai,
[oy] (cumprimento informal)
10. “isparolado” = desajeitado, estabanado
11. “fuzarca” = confusão, brigaria
12. “atipado” = de boa aparência, principalmente para homem
13. “quebrado” = duro, sem dinheiro
14. “diária” = diariamente
15. “catirá” = trocar, barganhar (“breganhá”)
16. “cafuçu” = bobo, feio, preto (para
pessoas)
17. “inzoná” = fazer hora, demorar
18. “imbondo” = coisa sem importância, ninharia, migalhas (“ele só come imbondo”, “eu fiquei imbondano toda a
vida”)
19. “imbondero” = que se preocupa com ou que só come “imbondo”; aquele que “imbonda”.
20. “tifuque” = preto, crioulo, “pau-de-fumo” (para pessoas)
21. “pantentê” = muito (“um pantentê de coisa” = muita coisa)
22. “sungá” = suspender, erguer
23. “manqüéba” = uma pessoa que manca,
manco
24. “digero” = depressa (“vem digero, minino!”)
25. “nascida” = furúnculo
26. “tarado” = bobo (“cê é tarada, hein!”, de uma menina dizendo para
um colega)
27. “riguilido” = assanhado
28. “letéque” = falante, loquaz
29. “pendenga” = caso insolúvel, dificuldade
30. “móde” = a fim de (“a mãe saiu de per’ mode é’a num falá” = a mãe sair de perto a fim de não falar)
31. “manero” = leve
32. “éco!” = expressão de nojo, de repugnância
33. “munha” = igual a munho” (=moinho), [que mói], isto é, desordem, bagunça
34. “perrengue” = adoentado
35. “hai” = há (“a gente vévi perrengue que num hai
jeito”). Esta expressão é rara
36. “assentá” = anotar (“debitá”)
37. “discabriado” = desanimado, desorientado
38. “léréia” = vozerio, algazarra
39. “fréjo” = bagunça, desordem (“vam’ jogá a cana p’u fréjo” = vamos jogar a cana para a
meninada, para quem conseguir pegar)
40. “zangá” = piorar (uma doença)
41. “balangá” = balançar
42. “rodero” = roda
Pondo uma certa ordem, poderíamos classificá-las [as expressões] da seguinte maneira:
a) relacionamento indivíduo-indivíduo:
“trelá” [de ‘atrelar’, para a junta de
bois]
“panhá” [de ‘apanhar’]
“oh!” ou “ôp!”
“catirá”
b) confusão, desordem:
“petêco”
“fuzarca”
“leréia”
“munha”
c) coisa que incomoda, feia,
desajeitada:
“mutrêco”
“isparolado”
“cafuçu”
“tifuque”
“manqüéba”
“pendenga”
“éco”
[“íngua”]
d) características da aparência ou do estado
psicológico do indivíduo:
“atipado”
“tarado”
“discabriado”
e) doenças:
“perrengue”
“nascida”
f) ninharia, coisa sem importância:
“imbondo”
“imbondero”
Aqui vale o mesmo que disse a propósito
das expressões sintáticas. Mesmo que a grande maioria das expressões não tenham
podido entrar em uma classificação semântica, a própria existência de 38 delas
num corpus não muito extenso como o que colhi já é significativa. Isso
sem entrar em considerações diacrônicas como a conservação de modos de dizer
não mais existentes em outros níveis da Língua Portuguesa, como é o caso de
“móde” e “hai” (este raríssimo) ou expressões nascidas por “imagens” como
metáforas (“trelá”, “québrádo”: aquele se relaciona mais com bois, como em
“trelá os boi” = jungi-los).
O importante em
tudo é que o Falar Capelinhense apresenta características próprias que o
distinguem dos de outras regiões do Brasil, se bem que seus falantes nem sempre
tenham consciência do problema. Esta consciência é marcante só no que se refere
à unidade de interesses, fazendo com que constituam quase uma única família, um
bloco compacto como comunidade.
4. Fonologia
Como já foi dito na Introdução, aqui se entende por Fonologia
o estudo do significante fônico. Mas, o significante fônico é por demais
complexo, apresenta diversas facetas que devem ser levadas em conta numa
descrição científica da linguagem. As duas principais distinções que senti
necessidade de fazer foram as que se podem estabelecer entre Fonologia
Segmental e Fonologia Suprassegmental. Pela primeira entende-se o
estudo da parte segmentável do significante, isto é, a que tradicionalmente
dividimos em sons da fala e, de um ponto de vista formal, em fonemas,
sílabas etc., como /p/, /b/, /s/, /z/, /ch/, /a/, /i/, /u/ ou então
/-a-/, /-pa-/, /-ar(-)/ etc. Pela segunda entende-se o estudo da parte do
significante que se sobrepõe à primeira, ou seja, a parte melódica.
Dentro da Fonologia Suprassegmental (ou Prosódia) estudaremos, ainda que
perfunctoriamente, a entoação da frase e a acentuação tônica,
além de fazer algumas observações marginais, porém pertinentes ao assunto em
tela.
Transcrevamos foneticamente
dez enunciados a fim de dar uma ideia do material sobre o qual o estudo se
efetuará. É claro que o corpus total é bem mais extenso: o material
sobre que fiz todas as observações deste capítulo consta de 106 enunciados
longos de cerca de 10 palavras cada, perfazendo um total de 1.060 palavras.
Eles pertencem a 6 informantes, a fim de garantir uma maior generalidade. Além
disso, este corpus foi suplementado por outras anotações feitas já em forma
técnica (=[transcrição fonética]) no momento da entrevista (todo o corpus está
gravado em fita “cassette”).
Dos informantes, dois têm cerca de 30 anos, outro
tem 62 anos, outro aproximadamente 9 anos, e dois, finalmente, uns 40 anos mais
ou menos. Como se vê, abrange várias faixas etárias.
Vamos aos enunciados.
1.[dèvi te mayz o men uns trinta ãnu]
2. [lembu tudu brinkava
dji negu fujidu]
3. [as kawza ki
eli fazia kòbrava]
4. [jèla dèvi se
u jogu dji piãu, nè?]
5. [tein u kabèsayu,
tein u xèkabein]
6. [un vay se
ladrãu, u otu vay se asasinu, sein protesãu, i u otu vay se pidãu]
7. [i chego na
xua vendenu us trein]
8. [a tèxa
prãyna, a tèxa meyya sinzenta]
9.[ew viyya atè
u cheitu madruga]
10. [ja pe’go
gas’ta diñeru, nè]
Obs.: [Fiz algumas adaptações. Por
exemplo, só indico a sílaba tônica quando estritamente necessário; para o “r”
de “terra” e “rua” emprego o símbolo [x], ou seja, a velar fricativa surda; o
chamado “r” caipira, retroflexo, segue a IPA, []; não representei detalhes fonéticos
como as vogais fracas átonas finais]. No mais, pode-se ler como na ortografia.
A pronúncia da representação ortográfica não difere do Português Literário. Há
muita simplificação para facilitar a transcrição].
4.1. Consoantes
Sem levar em conta os sons bemolizados
(flat) e sustenidos (sharp), bem como as “modificações” avançados
(fronted) e recuados (backed), segundo a terminologia americana, pode-se
chegar ao seguinte quadro de contoides, entendendo-se por contóide qualquer som
de natureza consonantal ou “qualquer som que não seja um vocoide” (cf. 4.1.2),
isto é, que não seja um som oral ressoante (resonant)” (Pike, 1971, 244).
Bilabial labdental alveolar pal-alveolar palatal velar uvular
p t tch k
b d dj g
f
v
s ch x
z j
r lh (R)
l
m n
ñ
Temos, portanto, 20 contóides no Falar
Capelinhense, de natureza indubitável. Os outros são mais complicados, e serão
comentados mais abaixo.
O contoide uvular
não é muito bem definido. Às vezes se parece com o velar fricativo [x], às
vezes parece um som intermediário entre os dois. De qualquer maneira, não serão
dois fonemas distintos como veremos mais adiante. Os contoides [ñ] e [lh] (como
em pinha e pilha, respectivamente) na verdade não ocorrem. Mesmo
no Português Literário (ou Culto) seu caráter não é muito bem definido ([ñ]
seria mais a semivogal nasalizada, como em [viy~a] ‘vinha’; [lh] parece mais
[ly], como em [filya] ‘filha’ ). Por outro lado, temos um vibrante simples
alveolar [r] e um vibrante refroflexo [erre capira], além de um [t] e um [d]
alveolares e um [tch] e um [dj] alveopalatais.
Estes sons e
estas sequências de sons constituem pares suspeitos com outros sons que
lhes são acústica e/ou articulatoriamente próximos. Isto será objeto do tópico
seguinte.
Vejamos agora
quais são os sons foneticamente similares uns aos outros que podem ser
contrastados em ambientes idênticos ou em ambientes semelhantes,
uma vez que nestas condições sua existência resulta de escolha do falante,
portanto traz informação, não sendo variantes combinatórias nem variantes
livres.
/p/ : /b/ : /m/
[‘pedu] : [‘bebdu] ‘Pedro : bêbedo’
[‘xipa] : [‘xiba] ‘ripa : riba’
[‘matu] : [‘batu] ‘mato : bato’
[cha’ma] : [ka’ba] ‘chamar : acabar’
[cha’ma] :
[ka’pa] ‘chamar : capar’
Os únicos casos de sons como
estes em final de sílaba [interna à palavra, embora] que
consegui registrar foram os seguintes:
[‘kõmdu] ‘cômodo’
[ki’lõmtru] ‘quilômetro’
[‘bebdu] ‘bêbedo’
Eles serão comentados ao falarmos da
estrutura silábica.
/t/ : /d/ : /n/
[‘tè] : [dè] ‘até : der’
[‘ãta] : [‘ãda] ‘anta : anda’
[‘nadu] : [‘dadu] ‘nado : dado’
[ã’dãnu] : [ã’dadu]
Aparentemente, os dois últimos casos não
são bons exemplos, pois em um temos o contóide precedido de vocóide nasal e no
outro temo-lo precedido de vocóide oral. No entanto, como veremos ao tratar dos
vocóides, em [‘ãnu] e [ã’dãnu] os vocóides tônicos só são nasais devido à
presença de contóide nasal ([n]) imediatamente após eles. Logo, não são fonemas
nasais, uma vez que o traço nasalidade não traz informação nenhuma
devido ao fato de ser mecanicamente determinado pelo contexto.
Os contóides [tch]
e [dj] que, como já foi salientado, constituem pares suspeitos com [t] e [d],
respectivamente, merecem uma atenção especial. Isto porque a seguinte pergunta
pode ser feita: São eles variantes de um fonema ou correspondem a fonemas
distintos? Observando palavras como
[‘tava], [‘te], [‘tè] ‘estava, ter, até’
[‘tòpu], [‘to],
[‘tudu] ‘topo, estou, tudo’
[‘tãtu], [‘te~pu],
[‘tõtu], [tu~da] ‘ tanto, tempo, tonto, tunda’
[‘tchidji],
[tchiy~a] ‘ Tide [<Aristides], tinha’
[‘djiya], [dji~yeru]
‘dia, dinheiro’
verificamos que os contoides [tch] e [dj]
só ocorrem antes do vocoide [i], ao passo que [t] e [d] nunca ocorrem nesta
posição. Sendo, assim, seu uso é determinado mecanicamente pelo contexto, e
como eles são foneticamente aparentados, podemos concluir que [tch] e [t] são
submembros (alofones) de /t/, e que [d] e [dj] são submembros (alofones) do
fonema /d/. Isso porque, além do mais, [t] e [d] constituem dois fonemas
distintos, como já se verificou.
/k/ : /g/
[‘karsa] : [‘garsa] ‘ calça : garça’
[‘kèru] : [gèxa] ‘quero : guerra’
[‘xe~gu] :
[xãnku] ‘Rengo : arranco’
[‘kwal] : [i’gwal]
‘qual : igual’
[R] e [x] parecem constituir pares
suspeitos com os contoides supra. Se bem que o motivo para tal seja muito
fraco, será, contudo, comentado o fato ao falarmos do uvular [R] e do velar
[x].
/f/ : /v/
[‘faka] : [‘vaka] ‘faca : vaca’
[‘fi~] : [‘vi~] ‘ fim : vim’
[‘xifa] : [‘viva] ‘rifa : viva’
[ga’xafa] : [ga’xava] ‘garrafa : agarrava’
/s/ : /z/
[‘si~ku] : [‘zi~ku] ‘cinco : zinco’
[‘kasa] : [‘kaza] ‘caça : casa’
[‘xòsa] : [‘xòza] ‘roça : rosa’
De todos os contóides comentados até
aqui estes são os únicos que ocorrem em final de palavras e mesmo em final de
sílaba (medial ou final). Só que não se opõem nesta posição. Sua distribuição é
determinada pelo contexto. Quando em final de sílaba seguida de consoante surda
na sílaba seguinte ou em final de enunciado (de última palavra) só ocorre [s],
jamais [z]; quando em final de sílaba seguida de consoante sonora ou de vogal
na sílaba seguinte (a não ser que haja pausa após o contóide sibilante) só
ocorre [z], nunca [s].
Talvez valesse a pena
recordar que só aparecem em contextos como
os seguintes (nunca como suporte do morfema de plural):
[doys] ‘dois’
[nòys] ‘nós’
[us] ‘os’
[uz a’migu] ‘os amigos’
[mayz o me)nu] ‘mais ou menos’
[to’xezmu] ‘ torresmo’
[kòsta] ‘costa’
/ch/ : /j/
[‘cheytu] : [jeytu] ‘ sujeito : jeito’
[‘cha] : [‘ja]
‘chá : já’
[mu’chochu] :
[a’joju] ‘muxoxo : ajoujo’
[‘achu] : [‘traju]
‘acho : trajo’
[‘xãchu] : [‘xãju]
‘ rancho : arranjo’
/R/ : /l/
[‘karu] : [‘kalu] ‘caro : calo’
[travi’seru] :
[ka’belu] ‘travesseiro : cabelo’
[mar] : [‘mal] ‘mar : mal’
Com exceção de alguns monossílabos, como
[mal], e menos polissílabos ainda, não é muito comum o contóide [l] em final de
sílaba (e de palavra). Não obstante, registrei algumas alternâncias
interessantes:
[al’tchiva] ~ [ar’tchiva] ‘Altiva’ (nome
de mulher)
[al’ker] ~ [ar’ker]
‘alqueire’
[kwal’kE] ~ [kar’kè] ‘qualquer’
De qualquer maneira, em final de palavra
estes dois fonemas não se confundem (não há neutralização entre eles, segundo a
terminologia dos fonólogos de Praga): não ocorrem pronúncias como *[ani’mar]
(animal), frequentes em outras regiões do Brasil. A alternância supramencionada
só se verifica em final de sílaba intra-vocabular. [O nome de lugar “Parmital”
visto acima é revelador dessa tendência. A líquida da primeira sílaba é interna
à palavra, logo, é sempre [r]. A da última, por estar em posição final de
palavra, é [l] mesmo]. Como segundo elemento de um grupo consonantal, tal como
em [‘prãta]/[‘plãta], também só ocorre [r].
De qualquer maneira, evita-se o uso
desses sons em final de palavra de várias maneiras:
a) pelo acréscimo de um [i] átono após
as [palavras do Português Literário] terminadas em [l] [subjacente], como em:
[‘sòli] ‘sol’
[nòr’mali]
‘normal’
[‘mili] ‘mil’
Se bem que formas como [ka’lori] ‘calor’
também tenham sido registradas, mas já na zona rural, se assim se pode chamar a
“roça” por oposição ao “arraial”;
b) pala ausência pura e simples de [r]
como ocorre no infinitivo de todos os verbos:
[cha’ma] ‘chamar’
[amo’ja]
‘amojar’
[‘tè] ‘até’
[‘i] ‘ir’
[‘po] ‘pôr’
Nas outras palavras em uso em Capelinha
do Chumbo que apresentam [r] final ele permanece. Não existem no Falar
Capelinhense pronúncias como [‘ma] e [si~’yo] para “mar” e “senhor”,
respectivamente, se bem que em outras regiões do país o fato ocorra.
[muy’yè] ‘mulher’
[kuy’yè]
‘colher’
Voltaremos a este problema ao tratarmos
da estrutura silábica.
/x/
Decidi representar assim o som inicial
de “rua” e o medial de “carro”, apesar da restrição apresentada acima. Isto é,
o contoide [x] não está bem nitidamente distinto do contoide [R]. Nas posições
supra, às vezes parece ocorrer o uvular, às vezes o velar. Frequentemente
parece mesmo ocorrer um som intermediário entre os dois. Uma solução definitiva
dependeria de pesquisas em laboratórios de fonética, o que iria muito além dos
objetivos que me propus neste ensaio. Assim sendo, será grafado com o símbolo
[x] tanto fonética quanto fonemicamente.
De qualquer maneira, não se trata do
“trilled”, não se trata do “r francês”, [ou seja, não se trata da vibrante
múltipla uvular]. Ocorre mesmo em final de sílabas em casos esporádicos,
variando livremente com o contóide [rr], o “r caipira”, e com o vibrante
simples (“flap”) [r]. Ele só se opõe distintivamente a /r/ em início de sílaba
inicial, como em [‘kaxu] / [‘karu] ‘carro/caro’, uma vez que em meio de sílaba
(ou como segundo elemento de grupo consonantal) são representados por [r]
somente, havendo, portanto, uma sub-diferenciação
(under-differentiation) entre eles, bem como uma super-diferenciação
(over-differentiation) entre [r] e [l] (cf. Pike 1971: 141, 142). Em ambos
casos é a “neutralização” de distinções existentes alhures (cf. Trubetzkoi
1970: 80, 246-261). Em final de sílaba,
a situação é a seguinte para estes contoides:
Fonema realizado por
/r/ vibrante simples
[rr] retroflexo (“r caipira”)
[x] velar
O som [R], nos raros casos em que
ocorre, só realiza o fonema /x/. É importante observar também que /x/ se
atualiza como [g] quando seguido de consoante sonora. Portanto, o [g]
do quadro de contoides não passa de um alofone combinatório de /x/.
O que estará acontecendo com os fonemas
/x/ e /r/?
Eu solicitei a dois casais de aproximadamente 30
anos que pronunciassem as palavras “aberto, certo, tarde, mar, ar, firme,
Valdir, norte, sorte, professor, morto, furto” e o resultado foi o seguinte
(A=Agripa, Z=Zé Professor, D=Dalva do Zé, M=Maria do Agripa).
A - [a’bèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘marr],
[‘arr], [‘figmi], [val’dirr], [‘nòxtchi],
[profe’sro], [‘moxtu], [‘fuxtu]
Z - [a’bèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘marr],
[arr]. [‘figmi], [val’dirr], [‘nòxtchi],
[profe’sor], [‘moxtu], [‘fuxtu]
D - [abèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘max],
[ax], [‘figmi], [val’dix], [‘nòxtchi],
[‘sòxtchi], [profe’sor], [‘moxtu],
[‘fuxtu]
M - [abèxtu], [sèxtu], [‘tagdji], [‘mar], [ar],
[‘figmi], [val’dir], [‘nòxtchi],
[‘sòxtchi], [profe’sorr], [‘moxtu],
[‘fuxtu].
A mesma pessoa pronuncia ora
[rr] ora [x], [com a variante [g], e até mesmo [r], sem nenhuma
consistência. Talvez o que seja importante no caso seja o fato de que os
membros da comunidade não percebem nenhuma diferença entre um e outro som, isto
é, ambas as variedades são normais ali.
Mas, a hipótese que me parece mais viável seja a de que
se trataria de uma zona de transição entre a pronúncia [do] “r caipira” do
Centro-Sul e a nordestina. Como zona de transição, é natural apresentar ora
uma, ora outra forma, uma vez que sofre o influxo de dois lados.
O mesmo fenômeno ocorre com
os vocoides e [o] e [ò] pretônicos. Ora ocorre um, ora outro.
Em síntese, as consoantes, isto é, os fonemas
consonantais do Falar Capelinhense são os seguintes:
p t k
b d g
f s ch x
v z j
r
l
m n
perfazendo um total de 17,
contrariamente aos 19 do Português Literário, uma vez que não existe nem a
alveopalatal nasal /ñ/ nem a alveopalatal lateral [lh].
4.2. Vogais
Quanto aos vocóides silábicos, os que se
pode depreender dos dados fonéticos de que disponho são os que se encontram no
quadro abaixo, sendo que o til (~) depois de uma vogal indica que ele é nasal (esta
pesquisa não é aprofundada, do ponto de vista fonológico):
i, i~ u~
u
e,
e~
õ, o
è,
ò
ã
a
Os
[vocoides] nasais estão representados no centro,
relativamente aos orais correspondentes, porque, fisicamente, os equivalentes
de qualquer vocoide oral são mais centralizados. Afora isso, várias outras distinções feitas por nossos gramáticos (como, por exemplo,
entre vogais “reduzidas” e outras) não são pertinentes aqui.
Passemos a estudá-los contrastando-os em
ambientes idênticos ou semelhantes a fim de verificarmos se são todos fonemas
distintos ou se um ou outro é submembro de outro fonema.
/a/ : /ã/
[‘ata] : [‘ãta] ‘ata : anta’
[‘pasa] : [‘pãsa] ‘passa : pança’
[‘sa] : [‘sã] ‘“sá”’ : sã’
[‘paw] : [‘pãw] ‘pau : pão’
“Sá” é forma de tratamento íntimo entre
mulheres; é o feminino de “sô”, [até mais usado do que o feminino, e uma das
marcas de mineiridade lingüística].
/è/ : /e/
[‘éla] : [‘eli] ‘ela : ele’
[‘sèw] : [‘sew]
‘céu : seu’
[‘tè] : [‘te]
‘até : ter’
Esses dois sons só se opõem
distintivamente em posição tônica. Fora daí só ocorrem em sílabas pretônicas em
variação livre. Veja-se, por exemplo, [xè’vòrvi] ~ [xe’vòrvi] ‘revólver’. O
fato de não ocorrer [è] e [ò], em posição postônica se explica por não virem
nunca em final de palavras paroxítonas e pela ausência total de palavras
proparoxítonas.
/e/ : /e~/
[‘echu] : [‘e~chi] ‘eixo : enche’
[‘sedu] : [‘se~tu]
‘cedo : sento’
[ka’reta] :
[kwa’re~ta] ‘careta : quarenta’
Aparentemente se oporiam em final. No
entanto, se observarmos que palavras como “tê” e “tem” são foneticamente [‘te]
e [te~y~] ‘ter, tem’, verificaremos que não há esta possibilidade.
/i/ : /i~/
[‘ida] : [‘i~da] ‘ida : inda (ainda)’
[‘vida] : [vi~da]
‘vida : vinda’
[‘vi] : [‘vi~]
‘vi : vim’
/ò/ : /o/
[‘òka] : [‘oka] ‘óca : ôca’
[sò] : [‘so] ‘só : sô’
[a’v] : [a’vo] ‘avó
: avô’
[a’jòju] : [a’joju] ‘(eu) ajójo :
(o) ajoujo’
“Oca” [‘òka] é o buraco
da roda do carro [=carro de boi]; “sô” [so] é fórmula de tratamento íntimo
entre os homens, masculino de “sa”, como já vimos: “Uai, sô, num sei não!”;
“ajójo” é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo
“ajojá” (ajoujar); “ajôjo” é o substantivo equivalente.
Paralelamente ao caso de /è/ e /e/, só
se opõem em ambientes idênticos ou semelhantes em posição tônica. Portanto,
ocorrem em variação livre em posição pretônica também:
[kò’kãw] ~ [ko’kãw] ‘cocão’ (peça
do carro de boi)
[kò’xe~nu] ~ [ko’xe~enu]
‘correndo’
/o/ : /õ/
[‘otu] : [õtchi] ‘outro : ontem’
[‘trocha] :
[‘trõcha] ‘trouxa : troncha’ (= fem. de “troncho”, i.e., sem um dos chifres)
Em final não ocorre [o]. Alguns monossílabos que no Português Literário terminam neste som têm, no Falar Capelinhense,
outra forma. Exemplos:
[ku~] ‘ com’
[bãw] ‘bom’
Mesmo palavras como “tom” e “som”,
quando ocorrem, soam mais como [‘tõu~ e [sõu~]. Este problema será aflorado
também ao se falar da estrutura silábica.
/u/ : /u~/
[u] : [u~]‘o : um’
[ú~ta] : [u’za]
‘untar : usar’
[‘mudu] : [‘mu~du]
‘mudo : mundo’
[‘nu] : [‘nu~]
‘nu : “num”’
Esse “num” é forma átona de “não” quando
ocorre imediatamente junto do verbo.
Em conclusão, todos eles se opõem
entre si (não foram contrapostos todos eles uns com os outros mas, se os mais
próximos são fonemas distintos, quanto mais os mais distantes foneticamente!).
Portanto, são 12 os fonemas vocálicos: /a, ã, é, e, e~, i, i~, ò, o, õ, u, u~/.
4.3. Semivogais
Os vocoides assilábicos [ou semivogais] são
quatro. Ei-los;
Vocóides
assilábicos
anterior posterior
oral
nasal oral nasal
y y~ w,
w~ (nos ditongos escrito como [u], como em [kãu~].
Observando-os em seus ambientes podemos
fazer os contrastes em ambientes idênticos ou análogos, como fizemos com os
contoides e os vocoides silábicos. Mas isto será assunto dos parágrafos
seguintes.
/w/ : /y/
[‘paw] : [‘pay] ‘pau : pai’
[‘vaw] : [‘vay] ‘vau : vai’
Em posição pré-vocálica e inicial de
palavra há uma palavra de uso corrente, típica do lugar, que apresenta [w]:
[‘way] ‘uai’, a qual, no entanto, pode realizar-se também como [u’ay]. O [y],
no entanto, nunca aparece em início de palavra. Em início de sílaba medial ele
aparece como equivalente ao [lh] do Português Literário.
[‘fiyyu] ‘filho’
[‘foyya] ‘folha’
[muy’yè] ‘mulher’
Comparemos estruturas como estas com
outras, para verificarmos se o segundo [y] de palavras que tais resulta de
escolha do falante ou se é determinado mecanicamente pelo contexto, coso em que
não teria existência fonêmica:
[‘feyyu] : [‘feytu] ‘feio : feito’
[‘foyya] : [‘koyza] ‘folha : coisa’
Como se vê, o [y] seria uma ocorrência
do fonema /y/. No entanto, ele está aí sempre depois de um outro [y] e seguido
de vogal na sílaba seguinte, e sempre depois de uma sílaba tônica. Tantos casos
de restrição são mais que suficientes para nos autorizar a considerar o segundo
[y] de sequências como estas como uma projeção do primeiro [y] na vogal
seguinte, ou como um “som de transição” (outra maneira de dizer a mesma coisa).
Portanto, a grafia fonêmica daquelas palavras só pode ser: /’fiyu/, /‘foya/,
/’mu’yè/, /’feyu/. E o vocoide assilábico pertence à sílaba que o segue, é
claro. Isso explica a inexistência de
/lh/ no Falar Capelinhense.
Os dois vocoides
assilábicos nasais merecem um tratamento à parte. De fato, como já assinalou
Eunice Pontes numa obra que não é específica de Fonologia (Pontes 1972), [y~]
só ocorre depois de vogal nasal. Exemplos:
[‘mi~y~y~a] ‘minha’
[tõy~zi~] ‘Tõezim’ (<Tõezinho)
[‘pu~y~y~a]
‘punha’
[‘põy~]‘põe’
Como [y] oral nunca ocorre nesta
posição, segue-se que o [y~] aqui só é nasal devido à nasalidade da vogal que o
antecede. Portanto, não é um fonema nasal, mas sim uma variante do oral
homorgânico. Conseqüentemente, a representação fonêmica destas palavras deve
ser: /’mi~y~ya /, /tõy~’zi~/, /’pu~ya /, principalmente levando-se em conta a
interpretação dada ao segundo [y~].
Com o posterior [w~]
ocorre algo paralelo: só aparece após vogal nasal. Exemplos:
[‘pãw~] ‘pão’
[‘vãw~] ‘vão’
[‘nãw~] ‘não’
Além disso, sempre após o vocoide [ã],
pelo menos até onde pude investigar. Sendo sua existência regida mecanicamente
pelo contexto, é também variante combinatória de /w/. Em outros termos, [w] e
[w~] estão em distribuição complementar.
A título de
recapitulação e síntese, vejamos o quadro completo dos fonemas do Falar
Capelinhense: consoantes, vogais e semivogais (vocoides assilábicos do ponto de
vista fonético). Embora numa disposição um pouco diferente da empregada nos
quadros dos contoides, dos vocoides silábicos e dos vocóides assilábicos, a
representação segue a mesma linha de Pike, uma vez que o quadro é calcado no de
David W. Reed e Yolanda Leite, no capítulo “The segmental phonemes of Brazilian
Portuguese: Standard Paulista Dialect” (In Pike 1971, 194).
Em síntese, o Falar Capelinhense
tem:
17 consoantes
12 vogais
2 semivogais
31 fonemas
diferentemente do Português Literário,
cujo quadro de fonemas é o seguinte, segundo os construturalistas:
21 consoantes
12 vogais
33 fonemas
Isto se deve ao fato de eles
considerarem /w/ e /y/ como consoantes (semivocoides sonoros) e de existir
neste nível de nossa língua o fonema /ñ/ (cf. Back & Mattos 1972: 69 e 72).
consoantes vogais semivogais
p t k
i, i~ u, ~u y
w
b d g e, e~
o~.o
f s ch x è ò
v z j ã
r a
l
m n
4.1.4. Estruturas silábicas
Após um estudo minucioso de 29 enunciados contendo
366 sílabas, cheguei ao seguinte quadro estatístico dos padrões silábicos do
Falar Capelinhense:
estruturas silábicas número de ocorrência
CV 191
V 90
CVS 37
CVC 11
VC 11
VS 7
CVSC 6
CCV 6
CSV 2
CSVC 2
CCVSC 1
CCVS 1
SVS 1
Total de sílabas................366
Está patente a superioridade numérica do padrão CV,
que supera o segundo lugar (V) em quase três vezes. Ora, “a sequência
‘consoante mais vogal’ mostra ser a melhor sequência e por isso é a única
universal entre as variações de padrão silábico” (Jakobson 1967: 79). Se juntarmos
ao padrão dominante CV todos os outros indiciados por CV-, no caso CVS e CVC,
isto é, os que são variações do padrão original CV, teremos um total de 239
sílabas. Em outros termos, um total de mais de 65% do número total de sílabas.
Como se vê, inclusive o padrão silábico do Falar Capelinhense é mais simples do que o do
Português Literário, se bem que dentro dos
propósitos deste trabalho seria
perigoso inferir que esta simplicidade de estruturas silábicas teria alguma coisa a
ver com a simplicidade de condições sociais da comunidade. De fato, há povos selvagens cuja língua apresenta estruturas
silábicas muito mais complicadas
que as de palavras alemãs como “Zwerg” (anão) e “Pflanze” (planta), etc.
Não é necessário neste trabalho dar uma
lista exaustiva dos fonemas que ocorrem nas diversas posições da sílaba. No entanto, valeria a
pena salientar os que ocorrem em final de sílaba (medial e final) e os que podem constituir
grupos consonantais, uma vez que isto explica certos fatos da linguagem local.
Dos que ocorrem em final de
sílaba, temos os seguintes:
/r/, /s/, /l/, com as variações já vistas acima.
Estruturas exemplos
CVC [‘ma],
[‘kaska], [‘mal]
VC [‘fata], [‘falta], [us]
CVSC [‘poys], [mays]
CSVC
[kwa’kè], [i’gwal]
CCVSC [‘treys], [‘kruys]
As características supra valem para
outras finalidades também. Já que a tendência natural do falar local é para o
padrão CV, temos explicadas várias formas que vinham sendo consideradas
deformidades, desvios do “bom falar”. Por exemplo, por que ocorrem formas como
[adjivo’gadu] ~ [djivo’gadu] ‘advogado’
[ka’lori] ~ [ka’lorr] ‘ calor’
[‘sòli] ~ [‘sòl] ~ [‘sòu] ‘sol’
e outras semelhantes? Isto representa
uma luta, um conflito dentro do sistema, em direção a uma uniformidade, isto é,
para o restabelecimento do padrão silábico universal CV. E a presença de
palavras contendo esquemas como CCV, parincipalmente se C2 não fôr
uma das chamadas líquidas, se deve quase sempre ao influxo de comunidades de
fora. Mesmo ocorrendo palavras como “mal” e “par’ e outras terminadas em /l/ e
/r/, a preferência do sistema é pelo padrão CV. Acrescentando-se um /i/ após
aqueles fonemas restabelece-se o padrão geral. O problema de [djivo’gadu] será
tratado mais adiante.
Já havíamos visto que muito poucas
palavras terminam em /õ/ ou em qualquer outra nasal. Este fato, mais a grande
porcentagem de palavras terminadas em vocóide assilábico (ou semivogal),
explicam palavras como [‘bãu~] ‘bom’.
Quanto aos
grupos consonantais, eles ocorrem. Porém, nota-se que apresentam uma
percentagem muito baixa. Das 366 sílabas estudadas, 6 tinham a estrutura C1C2V,
uma tinha a estrutura C1C2VSV_2. Vamos aos exemplos.
Estruturas exemplos
CCV[‘briga], [‘braba], [bra’zilya]
[‘tri~ta], [bri~’kava], [kò’bRava]
CCVSC[‘treys], [‘kruys]
CCVS [la’drãu~]
Observando-se os dados acima, podemos
notar um outro fato interessante: a segunda consoante do grupo consonantal é
sempre /r/. Além do mais, os grupos consonantais ocorrem em maior número nas
sílabas iniciais: dos 8 grupos acima, 6 ocorrem no início das palavras, contra
2 no meio. Este fato também é revelador.
É que os grupos consonantais tendem a
ocorrer no início de palavras, consequentemente, em sílabas finais eles tendem
a não ocorrer. De fato, não registrei nenhum grupo nestas condições, mesmo
levando em consideração as centenas de palavras não incluídas naquelas de que
pesquisei as 366 sílabas. As seguintes palavras justificam estas afirmações:
[‘otu] ‘outro’
[‘pedu] ‘Pedro’
[‘kwatu] ‘quatro’
[‘negu] ‘negro’ e ‘Nego’ (apelido)
Estas formas têm a justificá-las também
o fato mais geral comentado acima, isto é, com esta formulação as sílabas estão
dentro da tendência natural das sílabas do Português Capelinhense para o padrão
CV. Em outras palavras, não se trata de uma deformação do “bem falar” apregoado
pelos filólogos puristas, mas de uma tendência natural cientificamente
comprovável.
Há um outro fato que merece atenção. Eu
havia dito acima que as únicas consoantes que ocorrem em posição pós-vocálica
eram /r/, /l/ e /s/. Examinemos as seguintes palavras:
[‘bebdu] ‘bêbedo’
[‘kõmdu] ‘cômodo’
[ki’lõmtru] ‘quilômetro’
De fato, elas desmentem aquela
afirmação. Mas, em vez de comentar o fato aqui, prefiro postergá-lo para o item
4.5, quando falarei da acentuação tônica, isto é, da Prosódia Vocabular.
4.5. Prosódia
Agora examinaremos perfunctoriamente a
Fonologia Supra-Segmental, isto é, a prosódia do Falar Capelinhense.
Infelizmente, este tópico é um dos mais mal tratados em nossos compêndios
tradicionais. Poder-se-ia mesmo dizer que em Português não existe nada satisfatório
sobre o assunto. E é de se admirar, uma vez que a Prosódia representa a própria
alma da língua e, de certa forma, é o elo entre Fonologia e Gramática (ou
Sintagmática, mais especificamente). Os contruturalistas são os únicos que
fizeram alguma coisa válida até hoje, pelo menos até onde pude investigar (Back
& Mattos 1972). No entanto, não entraram em pormenores, dando apenas uns
poucos exemplos. Se tivessem levado o princípio construtural até suas últimas
conseqüências talvez nos tivessem apresentado algo de valioso para o estudo de
nossa pobre Língua Portuguesa. Mas, vamos em frente.
A Fonologia Suprassegmental
pode ser encarada de dois modos, ou melhor, em dois instantes: o da prosódia da
frase (entoação) e o da prosódia do vocábulo (acentuação tônica). Aceitando a
teoria dos construturalistas, vejamos o que podemos notar na linguagem de
Capelinha do Chumbo.
Segundo os referidos autores, há em Português
quatro tons:
tom 1 à gravíssimo
tom 2 à grave
tom 3 à médio
tom 4 à agudo
Exemplos:
1. “- O senhor3 quer comer4?”
- período optativo (PO)
2. “- Co4mo se cha3ma?”
- período interrogativo (PI)
3. “- Dei3xa mais bara4to!”
- período jussivo (PJ)
4. “- E3la passava o
dia inteiro comi1go” - período assertivo (PA)
Em 1, o elemento constante,
isto é, distintivo, é o tom final /4/ ascendente. Em 2, o elemento distintivo é
o tom inicial /4/, com tom final descendente. Em 3, a constância é a
intensidade /4/, com tom final descendente. Em 4, finalmente, ela é o tom final
/l/ descendente.
Apliquemos esta notação a
enunciados (“períodos” na terminologia construtural). A fim de não estender
demais este tópico, veremos poucos exemplos, pois o que pretendo mostrar
aparece em quase todos os enunciados.
5. “Agó’3 qui cê chegô4?”
- PO
6. “E será3 qui é
professora ai4nda?” - PO
7. “On4de qui ceis
istuda3ro?” - PI
8. “O sinhor3 pricura
lá com o Zé4!” - PJ
9. “Es ‘pareceu3 pur
aí foi qu’ess’ povo de Nico Valeria1no” - PA
10. “Ih, larga iss...,
sô!” - PJ (sic!).
Aqui há pelo menos dois fatos que
merecem destaque. O primeiro é o fato de que a sílaba sobre que recai o tom /4/
de períodos optativos, como primeiro acima transcrito, apresenta um contorno
bastante interessante: inicia-se por um tom ascendente e termina por um tom
descendente, ou pelo menos semi-descendente, apesar de o contorno entonacional
deste tipo de enunciado ser com “final ascendente”. O mesmo fenômeno se
verifica na última sílaba marcada dos dois enunciados seguintes. Às vezes
parece simplesmente um alongamento da vogal, em vez da “ascensão e descensão”.
Creio que se poderia dizer que esta característica entonacional é típica da
linguagem da região. Pelo menos não se verifica em cidades como São Paulo, por
exemplo.
Os exemplos supra foram
trazidos à baila porque são algo de típico e tudo que é típico contribui para a
unidade do falar local, por oposição aos falares circunjacentes.
O PJ (período jussivo) e o
PA (período assertivo) seguintes não apresentam nada de especificamente
chamativo. Mas, o último enunciado é marcante. O autor da frase havia convidado
a todos nós que estávamos conversando com ele para uma festinha na casa de um
amigo seu. Então o meu “acompanhante” perguntou a ele se ficava bem convidar
outras pessoas, ao que ele retrucou com o que tentei reproduzir acima (10):
simplesmente emitiu uma entoação anasalada de qualquer coisa como o que tentei
transcrever, um engrolado que para uma pessoa de fora e sem saber das
circunstâncias em que o diálogo se deu seria incompreensível. No entanto, os
membros da comunidade, dadas as experiências comuns, isto é, dado o fato da
linguagem em situação, entenderam perfeitamente a mensagem que ele quis
transmitir. Isto é, ele quis negar, dizendo, por exemplo, “Deixa isso pra lá
sô!, “Não, não é verdade o que você está afirmando”, mas ao mesmo tempo sabia que
a situação não é muito regular. Em síntese, ele queria negar e afirmar ao mesmo
tempo, com um jogo estilístico-semântico só perceptível na entoação em que a
frase foi proferida. As palavras não eram necessárias. Se as usasse, ele se
implicaria demais: não as usando, ele afirmou e negou ao mesmo tempo.
Fatos como este são muito
comuns no linguajar local. Por que ocorreu isto? Acontece que estando a
linguagem sendo usada em seu contexto, em seu ambiente, praticamente não se
precisa de palavras em determinadas circunstâncias, dado o grau de
familiaridade, de unidade existente na realidade sociolinguística capelinhense.
Todo mundo entendeu. Além do mais, aquele “enunciado entonacional” não é um
fato isolado: frequentemente ocorrem outros semelhantes.
Observemos os enunciados abaixo:
11. “Ô morto, ô atirado....ô....., né?”
12. “Ele é......”
13. Não, iss’ é puxano a raç’, né? do pai
del’, né?”
Aqui têm-se alguns fenômenos típicos da
linguagem local. O primeiro enunciado está incompleto, pelo menos aparentemente.
Ou, dito de outra maneira, pelo menos no nível dos elementos segmentais. Mas,
na realidade ele não está. O que acontece é que tendo sido usado numa situação
cultural bem marcada, a própria pausa, o próprio silêncio em determinadas
circunstâncias é significante, isto é, é portadora de significado. As
reticências que se seguem a “atirado” e a “ô” significam qualquer coisa como
“matado por outros processos: faca, pau etc.”. Melhor seria dizer: as pausas
que se seguem a “atirado” e a “ô, uma vez que reticências são realidades
meramente gráficas, cuja função é representar realidades fônicas. O segundo
enunciado é, a este respeito, mais interessante. O falante aparentemente
interrompeu seu enunciado. No entanto, devido às mesmas circunstâncias referidas
para o primeiro exemplo, o enunciado cumpriu sua função comunicativa no momento
em que foi proferido. Alguém mencionou o nome de uma pessoa a ser convidada
para uma festa. Mas, como esta pessoa não era muito simpática (além do mais, um
parente seu estava presente), disse simplesmente “Ele é...” e todo mundo
entendeu e, o que é mais importante, não se feriu susceptibilidades de parente.
Já o terceiro enunciado talvez pertencesse mais à Sintagmática, pois se trata
de relacionamento de palavras. Mas, como se pode ver, apesar de a ordem não ser
a mais costumeira, o enunciado é aceitável. Por quê? Devido à entoação. De
fato, não fosse ela, como ligaríamos “raç’” a “do pai dele”? Só a entoação
patenteia o relacionamento entre os elementos. Infelizmente, no entanto, ela
ainda não mereceu a atenção dos estudiosos.
Do dito acima conclui-se que
o Falar Capelinhense é altamente redundante, como qualquer outro tipo de
linguagem humana articulada oralmente. Isso apesar de ter afirmado na
Sintagmática que ela a evita. Evita-se em um setor, mas faz uso dela em
profusão em outro, a fim de evitar a perda da mensagem devido aos “ruídos”
existentes em qualquer situação em que se use a linguagem. Assim sendo, até
mesmo as pausas, as interrupções são significativas, mas tudo devido ao
envolvimento mútuo entre linguagem e cultura.
Na Prosódia do vocábulo,
isto é, na Acentuação Tônica, há uma série de fatos marcantes. Se percorrermos
todos os textos típicos (com isso quero dizer: “menos os das pessoas instruídas,
que já moraram fora etc.’), verificaremos a ausência absoluta de palavras
proparoxítonas. Este fato é importantíssimo, pois ele explica vários “desvios”,
vários “vícios” do Falar Capelinhense, do ponto de vista dos filólogos e
gramáticos puristas. Com efeito, observemos as seguintes palavras:
[‘kòska] ‘cócegas’
[‘kòrgu] ‘córrego’
[‘muzga] ‘música’
O que explica esta divergência em
relação ao Português Literário? A explicação é simples: é uma das soluções
locais para evitar proparoxítonos.
E aqui podemos explicar a ocorrência
daqueles grupos consonantais apresentados acima. De fato, aquelas sequências de
consoantes, isto é, [mtr], [md] e [bd] vão de encontro aos padrões silábicos do
Falar Capelinhense, mas, diante de duas tendências contrárias (ausência de
proparoxítonos versus simplicidade de estruturas silábicas) prevaleceu a
primeira. Em um texto de 115 palavras de mais de uma sílaba a distribuição [de
tonicidade] foi a seguinte:
paroxítonos 81
oxítonos 33
proparoxítonos 1
total ..........................115
Mesmo assim, temos que levar em conta
que a única palavra cuja aparência é proparoxítona é “épuca”, e sua realização
foi mais [‘èpuka], isto é, quase [‘èpka], do que realmente [‘èpuka].
Outra observação que deve ser feita a fim de não se pensar que as oxítonas são
em grande número é que em geral são as palavras terminadas em “-ão”, os
infinitivos dos verbos, palavras de alta frequência em qualquer diálogo.
Portanto, uma estatística que levasse em conta não os números de ocorrência em
um texto, mas palavras diferentes, levaria a um resultado muito mais favorável
às paroxítonas. Levando-se em conta que “épuca” realiza-se como [‘èpka],
podemos afirmar que a ausência de proparoxítonos é absoluta. De qualquer
maneira, há uma tendência a se desfazerem as sequências consonantais
mencionadas acima da seguinte maneira:
[ki’lõmtru] tende a [ki’lõtru]
[‘kõmdu] tende a [‘kõndu]
[‘bebdu] tende a [‘bebu] (veja-se “bebum”)
Há uma outra tendência interessante no
que respeita o número de sílabas das palavras. Ocorrências como
[‘cheytu] ‘sujeito’
[djivo’gadu] ‘advogado’
e mesmo os exemplos do item anterior
representam uma relutância em usar palavras muito longas. Assim sendo, as
mudanças do penúltimo exemplo têm duas explicações para sua existência como
tais; as do último têm apenas uma.
Para as finalidades deste trabalho,
creio que os melhores exemplos são os penúltimos ou, mais especificamente, a
palavra [ki’lõmtru]: ela é um elemento estranho que está se insinuando na
linguagem local e para tal sofre algumas podas a fim de se adaptar aos hábitos
linguísticos do lugar. [A medida de distâncias tradicional é “légua”].
A estas alturas alguém poderia
perguntar: “Por que alongar-se tanto na descrição fonológica?” De fato, agora
faz-se necessária uma explicação. Essa longa descrição fonológica apresentada
visa a mostrar o Falar Capelinhense em seus elementos constantes a fim de se
salientar sua pureza, sua unidade, livre de toda e qualquer influência (por
enquanto) de fora. As variações constatadas, no entanto, representam esta
influência que começa a se insinuar, devido à presença da escola, aos meios de
comunicação e às viagens que os habitantes do lugar já começam a fazer a outras
terras. Por enquanto trata-se de variações que, como tais, não afetam o sistema
linguístico local, mas ao que tudo incica atingi-lo-ão também em futuro não
muito remoto.
O motivo para
uma afirmação como a do último período é que o falar se encontra mais puro nas
gerações mais velhas; nas novas, principalmente nas que frequentam as escolas,
as referidas variações são muito mais frequentes. Por exemplo, vimos acima que
[r] e [l] se alternam, em alguns casos, em posição pós-silábica. Mas, a
alternância não é comum a todos os membros da comunidade. Deixando de lado
algumas poucas pessoas mais letradas (por volta de uma meia dúzia) a ocorrência
de [l] na referida posição só se dá em pessoas que frequentam a escola e, eo
ipso, nas mais jovens. Mas, mesmo assim não é sempre e, como sabemos, estas
pessoas não são as mais representativas dos habitantes da localidade. As
pessoas mais idosas também podem usar [l] nestas condições, mas sempre numa
atitude calculada, isto é, diante de pessoas estranhas e/ou cultas. Entre si
usam [r]. Talvez mesmo os jovens quando falam uns com os outros deem
preferência ao som [r]. A presença do [l] é, portanto, uma forma de prestígio,
isto é, forânea, tida como “bem falar”, mas não pertence ao núcleo do sistema
linguístico local. Seria uma unidade extra-sistemática, e estaria em super-diferenciação
(over-differentiation) com outras do sistema, no dizer de Kenneth L. Pike (Pike
1971).
O mesmo
argumento vale para o uso de [y] em vez de [lh], como em
[mu’yè] ‘ mulher’
[ku’yè] ‘colher’
[‘fiyu] ‘filho’
Já o uso de [x], [r] e [rr]
pós-silábicos é um caso diferente. Se bem que haja uma tendência para o uso de
[x] entre as pessoas mais jovens, de um modo geral ocorrem em variação livre,
sem nenhum princípio condutor detectável em uma pesquisa não aprofundada como
necessariamente deve ser esta. No futuro pretendo dedicar um estudo somente à
fonologia capelinhense, quando então, quem sabe, será possível chegar-se a uma
conclusão sobre fatos como este e sobre outros também (como a Prosódia, tão mal
estudada mesmo no “Português Literário”).
Nos vocóides, ou
mais propriamente, nas vogais há fenômenos semelhantes. Como já vimos, [e] e [è]
bem como [o] e [ò] ocorrem em variação livre em posição pretônica. De qualquer
forma, há uma tendência nítida a se pronunciar [è] e [ò] quando se assume uma
atitude formal, o que nos autoriza a considerá-los as formas de prestígio (Head
1973). E assim, vários outros fenômenos poderiam ser trazidos à baila nesta
linha de pensamento, como os padrões silábicos, os padrões acentuais etc.
Nota-se sempre um sentimento de que “nóis fala tudo errado”, isto é, os “dotor”
da cidade é que falam “certo”. Mas, apesar deste sentimento, a linguagem
permance em sua pureza original, por enquanto.
O simples fato de a análise fonológica
nos ter mostrado que aqueles fenômenos são “variações” já é, por si só, eloquente,
já justifica por si a descrição, além de nos revelar a estrutura fonológica do
Falar Capelinhense que é tão perfeita como a de qualquer outra língua, por mais
sofisticada que seja a cultura de que é veículo. Além do mais, se são
variações, não pertencem ao núcleo fundamental da estrutura linguística local,
mas antes representam a pressão sociolinguística das comunidades circundantes
imediatamente e mediatamente.
5. Conclusão
Depois de tudo que foi dito nas páginas
precedentes, verificamos que em todos os aspectos em que podem ser divididos os
estudos linguísticos encontramos relação com a cultura. De certa maneira, isto
vem de encontro ao que Sapir disse em seu já mencionado “Língua e ambiente”
(Sapir 1969), isto é, que na Morfologia, na Sintaxe dificilmente encontraríamos
alguma influência do ambiente em que vivem os falantes de uma língua. No
entanto, Sapir foi um pioneiro, a Sociolinguística ainda não havia se formado.
Hoje, podemos afirmar, com segurança, que há muita relação entre qualquer um
dos aspectos supra-mencionados e o ambiente cultural e/ou físico. Se não
vejamos.
Na Morfologia salientei
fatos como as formas “es veio” [sem flexão verbal], ao lado de “pusemo” [com
flexão]. Concorrendo com elas vimos que há “viero” e “nóis pois”,
respectivamente. Enfim, que as formas verbais apresentam alomorfia, mas um dos
alomorfes só ocorre em determinadas circunstâncias. Ou seja, formas como
“fizemo”, “nóis fizemo” e, em casos raríssimos, mesmo “nós fizemos”, são
extra-sistemáticas, só são usadas em situações culturais nitidamente marcadas,
isto é, quando na presença de estranhos, principalmente de pessoas “cultas”.
Consequentemente, estas formas são culturalmente determinadas. Normalmente só
se usa “eu vim” e, para todas as outras pessoas, “veio”. Só o pronome distingue
se é primeira, segunda ou terceira pessoa, do singular ou do plural.
Até mesmo nos tempos verbais
foi levantada uma hipótese sobre a determinação cultural, isto é, o fato de o
passado ser um tempo marcado teria algo a ver com o apego à tradição, com o que
se passou e o que não se passou e que constituem o substrato para a estrutura
social local. Mas, como é uma hipótese, não se pode firmar nela para outras
ilações sem que primeiro fique provada.
Na Lexicologia vimos que o
grande número de apelidos, hipocorísticos, nomes “adulterados”, enfim, que a
existência de um nome oficial (de registro) e outro real (o usado pelos membros
da comunidade) também era um meio de a sociedade adaptar a tradição de nomes
próprios imposta pelo diassistema aos seus próprios padrões. Também isto é uma
forma de determinação cultural, de imbricação língua-sociedade, também isso
contribui para a unidade sociolinguística da comunidade capelinhense.
Quanto à Fonologia, como já foi
salientado em seu devido lugar, há muita coisa devida ao ambiente cultural.
Haja vista o fato já mencionado da existência de alofones, ou mais
especificamente, de variantes livres, em posição pretônica e posvocálica, caso
de [x], [r] e [rr], ou então, o caso de [ò] e [o], também em posição pretônica.
Salientaram-se também as alternâncias entre [r] e [l] em final de sílaba
(principalmente interna) e que o normal é o uso do primeiro contóide, sendo que
só se usa o segundo em situações mais formais, em atitudes postiças. Em resumo,
todas as variantes existem por determinação cultural, por pressão externa ou
interna. Poderia continuar enumerando uma longa série de casos semelhantes aos
comentados nesta conclusão, os quais se referem ao que foi levantado no corpo
do trabalho. No entanto, como frisei em vários instantes, meu levantamento é
necessariamente incompleto; são necessárias pesquisas mais aprofundadas em
setores específicos. O que tentei fazer é muito abrangente, portanto não pode
ser exaustivo em casos especiais. Futuramente, como já disse, pretendo voltar à
fonologia capelinhense.
Nenhuma comunidade
está imune a influências de outras comunidades. Assim, vimos que algumas das
variações existentes poderiam ser devidas a causas geográficas, ao fato de
Capelinha do Chumbo ser uma zona de transição entre duas grandes regiões linguísticas.
Entre elas foram lembradas [r], [rr] e [x], bem como [ò] e [o] em posição
pretônica. Outras, no entanto se devem ao influxo dos meios de comunicação (no
caso, o rádio) e ao grande número de pessoas do lugar que vão estudar fora
(principalmente em Patos de Minas), trazendo uma “pronúncia mais correta”;
foram lembradas também as viagens (raras) que os habitantes fazem a centros
mais adiantados. As escolas, sendo um fator de nivelamento linguístico, também
contribuem para uma modificação nos hábitos linguísticos. A existência de um
grupo escolar há vários anos (mais ou menos 20 anos) e de um ginásio desde 1968
não pode ser ignorada como fator de “correção do falar errado local”, como
diriam os filólogos e puristas.
Causas como as
mencionadas no último parágrafo justificam a existência de várias formas “de
prestígio”, bem como justificam o fato de que todo mundo tem um complexo de
culpa no sentido de achar que todos falam “errado”, isto é, quem fala certo são
os da cidade, os que “puxam os s e l”.
Por enquanto
estas variações ainda são extra-sistemáticas, são sentidas como não
pertencentes aos hábitos linguísticos locais. São formas marginais que os
falantes usam só quando assumem uma atitude postiça. No entanto, com o impacto
dos meios de comunicação, da escola, e outros, estas variações
extra-sistemáticas tenderão a se insinuar até mesmo no sistema e, afinal, serem
as únicas constantes. Se isso é um mal ou um bem não vem ao caso. O que vem ao
caso é que não podemos deixar desaparecerem os falares regionais que ainda se mantêm
puros, como o de Capelinha do Chumbo, em relação ao influxo externo (dos
grandes centros e, através deles, das culturas estrangeiras).
A pureza referida acima não tem nenhuma
conotação xenófoba. Como é do conhecimento de todos, os linguistas, os sociólogos
e os antropólogos têm um grande pesar em deixar desaparecerem culturas sem ser
estudadas. Hajam vistas as culturas indígenas brasileiras que estão se
extinguindo e outras que se acham já extintas. Os falares regionais, que são
expressão de uma comunidade una, coesa, merecem a mesma atenção.
Todos os elementos que o
Falar Capelinhense tem de específico distinguem-no dos falares das outras
regiões do Brasil e do diassistema. Se esses elementos são específicos, são um
fator de unidade, contribuem para que a comunidade seja realmente um bloco uno,
do ponto de vista sociolinguístico.
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