Grande parte das filosofias
ocidentais tem ignorado o mundo natural, atendo-se mais ao nível do espírito.
Nas últimas décadas, porém, vem emergindo uma filosofia centrada na valorização
do meio ambiente, chamada ecofilosofia. Nesse contexto, surgiu, em 1973, a
chamada ecologia profunda, proposta pelo filósofo norueguês Arne Naess (nascido
em 1912), que prefere falar em ecosofia, que seria sabedoria ligada ao meio
ambiente. Já na década de oitenta, foram formulados os fundamentos dessa
vertente da ecofilosofia. Trata-se dos oito Princípios da Plataforma do
Movimento da Ecologia Profunda, reproduzidos a seguir.
1. O bem-estar e o florescimento
da vida humana e da não humana sobre a terra têm valor em si próprios
(sinônimos: valor intrínseco, valor inerente). Esses valores são independentes
da utilidade do mundo não humano para propósitos humanos.
2. A riqueza e a diversidade das
formas de vida contribuem para a realização desses valores e são valores em si
mesmas.
3. Os humanos não têm nenhum
direito de reduzir essa riqueza e diversidade exceto para satisfazer
necessidades humanas vitais.
4. O florescimento da vida humana
e das culturas é compatível com uma substancial diminuição na população humana.
O florescimento da vida não humana exige essa diminuição.
5. A interferência humana atual
no mundo não humano é excessiva, e a situação está piorando rapidamente.
6. As políticas precisam ser
mudadas. Essas políticas afetam estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas
básicas. O estado de coisas resultante será profundamente diferente do atual.
7. A mudança ideológica é
basicamente a de apreciar a qualidade de vida (manter-se em situações de valor
intrínseco), não a de adesão a um sempre crescente padrão de vida. Haverá uma
profunda consciência da diferença entre grande e importante.
8. Aqueles que subscrevem os
pontos precedentes têm a obrigação de tentar implementar, direta ou
indiretamente, as mudanças necessárias .
Esses princípios têm por base
idéias de Arne Naess, mas foram formulados com a colaboração de George Sessions
(cf. Deep ecology, de Bill Devall, George Sessions. Salt Lake City:
Gibbs Smith, 1985).
Nas palavras do próprio Naess,
ecosofia é "uma filosofia de harmonia ou equilíbrio ecológico. Filosofia
como um tipo de sofia ou sabedoria é abertamente normativa, contém
normas, regras, postulados, anúncio de prioridades e hipóteses relacionados à
situação do universo. Sabedoria é sabedoria política, prescrição, não apenas
descrição científica e predição. Os detalhes de uma ecosofia conterão muitas
variações devidas a diferenças significativas relacionadas não apenas aos
'fatos' da poluição, dos recursos naturais, da população, etc. mas também a
prioridades de valores".
Os princípios de n. 1, 2 e 3 da Plataforma
do Movimento da Ecologia Profunda têm a ver com a questão da biodiversidade. De
acordo com eles, todos os seres vivos têm direito a ser respeitados como tais,
eles têm valor em si mesmos quer os humanos pensem assim quer não. A própria
biodiversidade favorece a valorização desses seres, uma vez que todos estão
inseridos em ecossistemas em que cada um tem um papel a exercer, mesmo que isso
não traga vantagens imediatas para os humanos. A ecologia profunda é
ecocêntrica, não antropocêntrica como muitos movimentos ecológicos, como é o
caso do movimento da ecologia rasa.
O movimento da ecologia rasa pode
até lutar contra a poluição e a depredação dos recursos naturais. Mas, seu
objetivo central é a saúde e o bem-estar dos povos dos países desenvolvidos,
uma vez que põe em primeiro plano o desenvolvimento econômico, não o
desenvolvimento pessoal. Portanto, contrariamente ao movimento da ecologia
profunda, não vai a fundo nas questões ambientais. Ele se atém a interesses
humanos de curto prazo. É formado por movimentos e ideias pretensamente
ambientais que, a despeito de bem intencionados, não têm por objetivo modificar
o atual estado de coisas. Por serem antropocêntricos, frequentemente, chegam a
justificar a depredação da natureza em nome de um passageiro bem-estar humano.
A ecologia profunda, ao contrário, questiona os próprios fundamentos de nossa
civilização "ocidental", centrada na economia, não na ecologia. Mas,
ela o faz sem recorrer à violência. Pelo contrário, seus partidários são explicitamente
contra qualquer forma de violência. Tanto que uma das inspirações de Naess é
Mahatma Gandhi.
Naess salienta que o mais
importante não é o índice de desenvolvimento econômico, medido em PIB, por
exemplo. Pelo contrário, desenvolvimento só se justificaria se tivesse por
objetivo um índice de desenvolvimento humano, portanto, IDH, não propriamente
PIB. Nesse ponto ele quase concorda com o ecoeconomista Lester Brown, que
defende a tese de que os economistas deveriam trabalhar junto com os
ecologistas, a fim de se averiguar o ônus do desenvolvimento econômico, como
exaustão dos recursos naturais, diminuição dos mananciais de água,
desmatamentos, efeito estufa e outros.
Uma das ideias centrais da
ecosofia proposta por Naess e colaboradores é ter uma visão total e
compreensiva de nossa situação humana e individual. Isso significa que o
indivíduo está incluído no meio ambiente. Não faz sentido fazer uma separação
rígida entre eu e o mundo. O eu faz parte do mundo. Isso implica uma visão que
contemple a diversidade das manifestações do mundo, embora para cada indivíduo
o importante seja a autorrealização, o que significa que ele precisa levar em
conta a autorrealização dos outros indivíduos. Dentro da visão de tolerância
que caracteriza a ecofilosofia ou ecosofia, como Naess prefere chamá-la,
crenças diversas podem ser acomodadas. Para isso, foram previstos Níveis de
Questionamento e Articulação. No Nível I, das Premissas Primeiras, estão os
princípios que cada um segue, suas convicções pessoais. Aí podem incluir-se os
seguidores do taoísmo, do cristianismo, da ecosofia de Naess (que ele chama de
Ecosofia T) assim como pode se incluir a minha ecosofia (que chamo de Ecosofia
A), a sua visão de mundo e assim por diante. Esses movimentos só são aceitáveis
pelos seguidores da ecologia profunda se se enquadram nos preceitos do Nível
II, que é o Movimento dos Princípios da Plataforma visto acima. O nível
superior, Nível III, é o das políticas seguidas. Dependendo das Premissas
Primeiras que o indivíduo segue, ele poderá ter uma política A, uma política B,
uma política C e assim por diante, mas sempre filtradas pelos princípios do
Nível II. O último nível, o Nível IV, é o das Ações Práticas, que podem ser W,
X, Y etc. É o nível em que se aplicam os princípios na intervenção sobre o
mundo. Como vimos, isso se dá de forma pacífica. Pode haver muita diferença de
estratégia no Nível III e de tática no nível IV, contanto que não infrinjam os
Princípios do Nível II. No fim, tudo converge para a ideia central de
valorização da diversidade, de respeito por todas as formas de vida e pela
própria natureza mineral.
Enfim, a ecologia profunda, ou
ecosofia, representa uma nova maneira de ver o mundo e de se relacionar com
ele. Antes de tudo respeitar a diferença, agir de modo benevolente, evitar
suntuosidade, procurar aproximar-se da natureza exterior aos nossos corpos
físicos, na medida do possível. Todos os males do mundo moderno vêm de nosso
distanciamento da natureza, de nossa ganância, que nos leva a sempre querer
mais e nunca ter tempo para simplesmente viver. Os mais ricos não são
necessariamente os mais felizes e os mais pobres não são necessariamente os
mais infelizes.
[Texto publicado originalmente em
Revista Meio Ambiente - Revista de
Ecologia e Consumo
No meu livro O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação (Campinas: Pontes, 2012) há um capítulo sobre 'ecologia profunda' (p. 49-67).
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